Abraão, ao apresentar um conceito de uma divindade transcendente (que não se identificava com um ídolo ou uma imagem) tornou mais difícil a resposta à pergunta “o que é Deus?”. Como pode o ser humano perceber uma realidade que o transcende? E se a Divindade não se identifica com nada do que conhecemos, como pode a Sua existência pode ser provada pela ciência ou pela razão?
Os sucessivos Profetas fundadores das grandes religiões mundiais afirmaram a existência de Deus de diferentes maneiras, de acordo com a capacidade de compreensão dos povos a quem Se dirigiam. Isto é claramente perceptível no Judaísmo, no Cristianismo e no Islão; nestas três grandes religiões o conceito de Divindade Única e Transcendente é comum apesar de cada um dos Seus Fundadores ter feito essa proclamação com termos e expressões adequados à cultura e maturidade dos povos que Os ouviram.
Sendo o Kitáb-i-Iqán um livro essencialmente de carácter teológico, é com alguma naturalidade que ali encontramos uma significativa referência a este tema. O fundador da religião bahá’í afirma o seguinte sobre o Criador:
É evidente a todo coração iluminado e possuidor de discernimento, que Deus, a Essência incognoscível(a), o Ser Divino, é imensamente elevado além de todos os atributos humanos, tais como existência corpórea, ascensão e descida, saída e regresso. Longe esteja de Sua glória que a língua humana celebre adequadamente Seu louvor, ou o coração humano compreenda o Seu insondável mistério. Ele está, e sempre esteve, velado na eternidade antiga da Sua Essência, e permanecerá na Sua Realidade, para todo o sempre, escondido da vista dos homens... Nenhum laço de relação directa pode, em absoluto, ligá-Lo às Suas criaturas. Ele mantém-se elevado além e acima de toda separação e união, toda proximidade e todo afastamento. Nenhum sinal pode indicar Sua presença ou Sua ausência... [104]No Kitáb-i-Iqán, Bahá'u'lláh afirma que os próprios Profetas e Sábios reconhecem a sua incapacidade para compreender a realidade Divina. Quanto a quem afirma ter conhecido Deus, Bahá'u'lláh escreveu numa outra epístola "Quem afirmar que Te conheceu, em virtude de tal afirmação, terá dado testemunho da sua própria ignorância; e de quem acreditar que Te alcançou, todos os átomos da terra darão testemunho da sua incapacidade e proclamarão o seu falhanço"(b).
Shoghi Effendi (bisneto de Bahá'u'lláh) ao descrever os múltiplos temas do Kitáb-i-Iqán, começa por dizer que Bahá'u'lláh "proclama inequivocamente a existência e a unicidade de um Deus pessoal, Incognoscível, Omnisciente, Inacessível, Omnipresente, Fonte de toda a Revelação, Todo-Poderoso e Eterno"(c). Esta frase resume de forma clara e sucinta o conceito de Deus na religião baha’i. Os significados dos termos usados por Shoghi Effendi são relativamente fáceis de perceber, com excepção do primeiro ("Deus pessoal"). O próprio Guardião esclareceu este conceito:
O que se pretende dizer por Deus pessoal é que se trata de um Deus consciente da Sua Criação, que tem uma Mente, uma Vontade, um Propósito, e não é, tal como muitos cientistas e materialistas acreditam, uma força inconsciente e determinada que opera o universo. Uma tal concepção do Ser Divino como realidade suprema e sempre presente em todo o mundo, não é antropomórfica, pois transcende todas as limitações e formas humanas, e de forma alguma tenta definir a essência da Divindade, que, obviamente, esta para lá de qualquer compreensão humana. Dizer que Deus é uma realidade pessoal não significa que Ele tenha uma forma física, nem que de forma alguma se assemelha a um ser humano. Defender uma crença assim seria pura blasfémia. (d)
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NOTAS
(a) – Nas escrituras Baha’is, a expressão "essência incognoscível" é usada com frequência para fazer referência a Deus. O próprio Báb usa esta expressão: "Nenhuma criatura jamais Te poderá compreender de um modo condizente com a realidade de Teu santo Ser, nem poderá jamais um servo Te adorar de uma maneira digna de Tua incognoscível Essência. "
(b) - Bahá'u'lláh, Prayers and Meditations, pag. 123.
(c) - Shoghi Effendi, A Presença de Deus, pag. 200.
(d) - Shoghi Effendi, 21 Abril, 1939, Lights of Guidance.
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Entre parêntesis rectos indica-se o nº do parágrafo citado. Sobre a numeração dos parágrafos do Kitáb-í-Iqan, ver Notes on paragraph numbering of the Kitab-i-Iqan.
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4 comentários:
Estamos perante mais um excelente texto que merecia ser alvo de atenção de um público mais vasto - e diversificado.
Referiste-te a Abraão e às Religiões semitas. Mas os Hindus e Budistas - segundo creio - têm uma visão mais panteísta do Universo. A que se deverá tal diferença?
Eu bem que me quero manter afastado... mas assim, não consigo.
Os Hindus, por incrŕvel que pareça aos leigos ocidentais, é uma religião monoteísta e não politeísta embora tenham um panteão bastantante vasto e alargado, fruto dos seus milhares de anos de existência. Quanto ao Budismo, nem sequer dá para ser comparado com o Hinduísmo, pois embora o panteão budista seja vasto, o que lhes dá origem não é o mesmo, para além de terem três Manifestantes pelo meio.
Segundo os ensinamentos baha'is, os conhecimentos religiosos das sociedades dependem daquilo que lhes foi revelado por um Mensageiro, e por vários constrangimentos relacionados com a sua evolução histórica e cultural.
No que toca ao "conceito de Deus", a diferença entre as religiões abraâmicas e as religiões "orientais" não é assim tão linear. Apesar das religiões "orientais" possuem um conceito de Deus imanente (creio que é designado por "Realidade Última"), existem vários sábios hindus e budistas que defendem o conceito de Deus transcendente. E nas religiões abraâmicas apesar da maioria das correntes defender o conceito de Deus transcendente, podemos encontrar sábios e místicos cujas ideias parecem descrever um Deus imanente (estou a lembrar-me de S. João da Cruz e de Ibn Arabi).
A minha opinião pessoal (a que já chamaram de "relativismo baha'i") é que o Criador é transcendente e Se reflecte na Sua criação (mas é distinto desta). De alguma forma, parece-me que é um ponto de equilíbrio entre as duas perspectivas sobre a Divindade.
Olá Marco!!
O seu texto é excelente e foi muito bem elaborado.
Eu creio que o texto deveria ser alvo de uma reflexão profunda pelas mais diversas religiões.
Um grande abraço;
Jansen Coutinho-Belo Horizonte-MG-Brasil.
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