segunda-feira, 19 de setembro de 2005

Perante o Exclusivismo

O meu texto de hoje na Terra da Alegria.
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Num post anterior referi que o exclusivismo religioso não é um aspecto inerentes às religiões, mas sim uma atitude dos crentes em relação à religião e pode ter consequências nefastas no relacionamento humano. Essa atitude baseia-se no conteúdo de alguns excertos das Sagradas Escrituras. Nos parágrafos seguintes vou expor algumas reacções possíveis perante as atitudes exclusivistas dos cristãos.

A Autenticidade dos Textos

Questionar a autenticidade dos textos é talvez a mais comum (e a mais atraente!) das atitudes em relação ao exclusivismo. Há sempre quem argumente que esses textos foram adicionados às Escrituras originais. John Hick segue este tipo de argumentação e questiona se algumas passagens do Novo Testamento alguma vez teriam sido pronunciadas por Jesus Cristo[1]. Talvez por este tipo de argumentos ser frequentemente usado para questionar a pureza, a legitimidade e a autenticidade da própria religião cristã, nem sempre é levado a sério.

Sobre este assunto, a perspectiva baha'i é muito clara. 'Abdu'l-Bahá, numa conversa com um grupo de sacerdotes protestantes, em Paris, abordou o sentido dos textos e nunca questionou a sua autenticidade. Segundo as Suas palavras: "A nossa crença em Cristo é aquela que se encontra registada no Evangelho; no entanto, ao elucidamos este assunto não falamos literalmente"[2]. Também Shoghi Effendi afirmou que o Alcorão, a Bíblia e as Escrituras Baha'is podem ser considerados livros autênticos.[3]

A Representatividade dos Textos

Os textos que servem de base às atitudes exclusivistas poderão ser considerados os mais relevantes nas escrituras cristãs? Algumas comunidades cristãs (especialmente as de tendência mais conservadora) costumam extrapolar a importância dos textos exclusivistas e presumir que toda a Bíblia apenas contém textos deste género. Neste tipo de atitude enfatizam-se apenas alguns excertos das escrituras e atribui-se um carácter secundário aos restantes textos. Por exemplo, há que afirme que a mensagem do Evangelho está contida na expressão "o Filho único" (Jo 3:16) e que todo o texto deve ser encarado tendo esta expressão em mente.

Mas há também os teólogos cristãos que enfatizam os textos não-exclusivistas. O conceito judaico do Deus de Abraão soberano sobre todos os povos foi adoptado pelo Novo Testamento; um Deus e Pai de todos os povos, "a luz verdadeira que ilumina todos os homens"(Jo 1:9), que deseja que todos os homens sejam salvos (1 Tim 2:4), a quem "agrada" o que "põe em prática a justiça" (Act 10:35). Alguns chegam mesmo a argumentar que Mateus descreve Cristo como uma espécie de mediador entre Deus e a humanidade.

No Livro da Certeza, Bahá'u'lláh critica os sacerdotes muçulmanos que fazem leituras selectivas do Alcorão:
Que estranho! Estas pessoas, com uma mão, agarram-se àqueles versículos do Alcorão e àquelas tradições do povo da certeza que acham de acordo com suas inclinações e interesses e, com a outra mão rejeitam os versículos e tradições que são contrários aos seus desejos egoístas. "Acreditais, então, uma parte do Livro, e negais uma parte?" [4] Como poderíeis julgar o que não compreendeis?[5]
Com alguma facilidade se percebe que esta crítica é extensível a outras religiões. Assim, na minha interpretação pessoal dos ensinamentos de Bahá'u'lláh, os cristãos que defendem crenças exclusivistas estão a distorcer os ensinamentos de Jesus, ao seleccionar e enfatizar alguns versículos em detrimento de outros.

A Interpretação dos Textos

Uma terceira atitude em relação ao exclusivismo é afirmar que este se baseia em interpretações incorrectas das escrituras. Um exemplo típico deste tipo de debate é a interpretação do versículo "Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida. Ninguém chega ao Pai salvo através de mim." (Jo 14:6). Aqui os teólogos dividem-se entre os que consideram que esta afirmação se refere ao Jesus da história, e os que consideram que é uma referência ao Cristo da fé.

Pode-se argumentar que o Jesus do Evangelho de João é diferente do Jesus dos evangelhos sinópticos. "O Jesus de João é o Jesus da fé, o Jesus da imaginação da igreja dos primeiros tempos"[6], "de reflexão espiritual do que de fiabilidade histórica"[7] . É importante ter presente que o Evangelho de João se inicia com a encarnação do Verbo e não com o nascimento de Jesus. John Cobb, um teólogo protestante defensor do diálogo inter-religioso, argumenta que é o Verbo de Deus que fala na primeira pessoa nas páginas do Evangelho de João:
Afirma-se, assim, que o Verbo, que tinha encarnado em Jesus, é o Caminho, a Verdade e a Vida, e que ninguém chega ao Pai salvo através do Verbo. Isto não significa que o Verbo esteja presente e activo apenas em Jesus; no prólogo do Evangelho afirma-se que o Verbo era desde o início da Vida, e que esta vida era a luz verdadeira que ilumina toda a gente[Jo 1:9] [8]
"O Cristo que estamos a falar não é monopólio dos Cristãos, nem é um mero Jesus de Nazaré."[9] . Estamos assim na presença de um Cristo Eterno (distinto do Jesus histórico) que se manifesta em diferentes eras. Esta forma de interpretação dos textos exclusivistas é muito semelhante ao método baha'i de interpretação das Escrituras[10].

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NOTAS
[1] – Hick, Second Christianity, p.28
[2] - 'Abdu'l-Bahá on Christ and Christianity, pag. 8
[3] - Shoghi Effendi, citado em Lights of Guidance, nº 1033
[4] - Alcorão 2:85. Trata-se de uma acusação de Maomé aos Judeus e Cristãos do Seu tempo. No livro, Bahá'u'lláh mostra que esta acusação é agora aplicável aos próprios muçulmanos.
[5] - Kitáb-i-Íqán, parágrafo 181
[6] - Dialogue, pag. 16
[7] - Carpenter, Jesus, pag. 14
[8] - Cobb, Dialogue, pag. 16
[9] - Raimundo Pannikar, professor de religiões comparadas. Este autor afirma ainda que Cristo representa o centro de uma realidade, e que Rama e Khrishna são outros dos Seus nomes.
[10] – No livro Jesus Christ in Bahai Writings, Robert Stockman defende que, no Evangelho de João, quando Jesus fala na primeira pessoa, fá-lo na Sua condição de Manifestante de Deus e não na Sua condição humana.

7 comentários:

Anónimo disse...

http://www.contenderministries.org/bahai.php

The Baha'i faith has become a popular religion in an environment of ecumenism, inclusiveness and political correctness. Embraced eagerly by the United Nations and other interfaith organizations, Baha'i is a growing humanist influence on our world.

Depois segue-se uma descrição da vossa religião por parte de cristãos exclusivistas!

Anónimo disse...

Marco

Este é realmente um assunto fundamental tanto para bahais como para cristãos. Já falámos aqui sobre o assunto, e, olhando à enorme quantidade de passagens bíblicas, não me parece, de forma alguma, que sejam os cristãos exclusivistas a "extrapolar a importância dos textos exclusivistas e presumir que toda a Bíblia apenas contém textos deste género". Vários exemplos, numa procura não sistemática : os já mencionados João 14:6 e I Timóteo 2:5, Hebreus 9:15, Actos 4:2 e João 3:18.
Claro que a nível teológico há leituras para todos os gostos. Desde "aligeirar" o Evangelho de João até especular sobre significados não evidentes nos textos. O interessante é que para chegarem a essas conclusões têm sempre que por em causa a leitura literal da passagem.
Só um reparo (porque é importante do ponto de vista teológico). Os protestantes não têm "sacerdotes". Para eles o crente tem acesso directo a Deus (através de Jesus Cristo). Como o sacerdote é um intermediário entre Deus e os homens deixa de ser, portanto, necessário. Claro que a Igreja Católica Romana tem outro entendimento. Para chegar a Deus são necessários a própria Igreja, os santos e o padre (este sim um sacerdote).

Anonymous #2

Marco Oliveira disse...

Anonymous #2,

Já não é a primeira vez que chamo "sacerdotes" aos pastores protestantes. Vamos ver se para a próxima vez não escrevo essa asneira. Se o meu amigo Dimas de Almeida sabe disto ainda levo um puxão de orelhas. :-)

"... a nível teológico há leituras para todos os gostos." É verdade. Mas como li algures, é no choque das ideias que surge a centelha da verdade. Talvez seja essa vontade de procurar a verdade que nos faça prosseguir estes debates. :-)

Uma outra teoria que li sobre o Evangelho de João é que este está escrito numa "linguagem de amor". Quem escreveu o texto estava perfeitamente apaixonado pelos ensinamentos de Cristo; as suas palavras reflectem o entusiasmo da renovação espiritual e descobriu um novo sentido para a vida.

Poder-se-ia fazer uma analogia com as palavras de um homem apaixonado. Ele pode falar de uma mulher em termos profundamente elogiosos: "Ela é a mulher mais perfeita que já existiu", "Nunca vi uma mulher assim", "Se não me casar com esta nunca me casarei com nenhuma outra" e por aí fora… As palavras desse homem fazem todo o sentido dentro de um determinado contexto. Mas se interpretarmos as suas palavras literalmente e considerarmos que se aplicam eternamente, podemos ser levados a pensar que o amor foi privilégio de um único homem que amou uma determinada mulher.

Da mesma forma se interpretarmos literalmente o Evangelho de João podemos ser levados a pensar que o amor pelos ensinamentos divinos apenas é possível através de Jesus Cristo. Aqui que estamos em desacordo.

"Para eles o crente tem acesso directo a Deus". Isso significa que, segundo o Cristianismo Protestante, uma pessoa pode ter acesso à Essência de Deus? Para os baha’is, Deus é incognoscível; ninguém tem acesso directo a Deus. Apenas O podemos conhecer através dos Seus Mensageiros.

Anónimo disse...

"Para eles o crente tem acesso directo a Deus"

Pois, a essência do Cristianismo é a restauração, através de Jesus Cristo, da ligação quebrada entre Deus e o Homem. Segundo o Génesis havia uma relação pessoal que foi quebrada com o surgimento do pecado. Obviamente que esta é uma relação entre Criador e criatura, entre perfeição e imperfeição. Não encontra paralelo nas nossas relações humanas. Mas que é algo pessoal disso não há dúvida. Por isso mesmo no Novo Testamento há referências a Deus como Pai e até, num registo que julgo não haver em mais nenhuma das outras grandes religiões, como Paizinho. O Deus do Evangelho não é um deus fechado num castelo que recebe apenas os enviados do povo, mas um Deus que estende a mão a cada ser humano como um pai faz ao filho.

P.S. - Acho que Dimas de Almeida concorda bem mais facilmente contigo do que eu...:)
Anonymous #2

Marco Oliveira disse...

Anonymous #2,

Eu acredito num "Deus pessoal" (consciente da Sua criação e com quem podemos estabelecer uma relação pessoal) mas não acredito que possa existir uma relação directa entre a Sua Essência e a Sua Criação. Aqui faço a analogia entre o sol e as criaturas vivas neste planeta. Todas recebem a luz e o calor que emana do sol (e beneficiam com isso), mas nenhuma das criaturas tem acesso directo ao sol. A relação entre o sol e as criaturas faz-se através dos raios solares; a relação entre Deus e a humanidade faz-se através do "Espirito Santo".

Vou escrever mais sobre este assunto (Deus e a Sua relação com a humanidade) nos posts sobre o Kitab-i-Iqan.

Chamar "Pai" ao Criador tem um significado especial. É que confia-se num pai de uma forma que não se confia em mais ninguém. (se tens filhos já deves ter percebido isto ;-) ). De igual modo, a nossa confiança em Deus deve ser total e absoluta, semelhante à que uma criança deposita nos seus pais.

Anónimo disse...

Marco

Na relação pai-filho há, para além da confiança absoluta do filho no pai, também o amor absoluto do pai pelo filho. E este amor só pode ser expresso, vivido e alimentado numa relação pessoal. A parábola do filho pródigo (Lucas 15:11 a 24) é exemplar neste aspecto. Durante a separação o amor do pai sempre existiu, ele nunca deixou de desejar o melhor para o filho. Mas quando este regressou então houve festa, abraços e uma relação mais profunda, porque vivida, foi iniciada. Cristo faz esta diferença. O filho, na parábola, reconheceu, antes de voltar, que tinha agido mal e compreendeu e aceitou os conselhos do pai. Podia ter ficado por aí. Mas faltava o mais importante: o reatar da relação com o pai. E ele voltou.
É, ressalvando as já referidas diferenças entre Criador e pai (humano), este o conceito de relação pessoal com Deus. Cristo permite o reencontro. Eu posso falar com Deus (orar), ser orientado por Ele, sentir a tal "paz que ultrapassa todo o entendimento" (Filipenses 4: 6 e 7).

Anonymous #2

Marco Oliveira disse...

Anonymous #2,

O que escreves faz sentido; mas para mim aplica-se a todos os Mensageiros de Deus. Não consigo conceber que um Pai que acompanha um filho se possa calar, ou retirar; pelo contrário, acredito que continua a apoiá-lo, a ajudá-lo e a explicar-lhe as coisas de acordo com a sua maturidade. É por isso que acredito que Ele envia ciclicamente os Seus Mensageiros com ensinamentos adequados à nossa maturidade e necessidades. Ciclicamente, sentimos o amor d’Ele; ciclicamente, Ele fala connosco; ciclicamente, a nossa relação com Ele vai-se fortalecendo.