sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

Sam Harris e o Fim da Fé (5)

O PROBLEMA DO ISLÃO

"Estamos em guerra com o Islão" é uma das ideias principais do livro O Fim da Fé. A afirmação é uma óbvia simplificação da realidade; o relacionamento entre o Ocidente e alguns países do Médio Oriente é bem mais complexo do que esta frase deixa a entender. É óbvio que - nas últimas décadas - o Islão radical têm sido uma fonte de problemas para o mundo Ocidental e para o próprio Islão. Penso que expressões como "Islão radical" e "fundamentalismo islâmico" apenas entraram na linguagem corrente expressão após a revolução iraniana de 1979. Onde estava esse o radicalismo islâmico antes dessa época?

Isto só por si lava-nos imediatamente a questionar: a que é que Sam Harris se refere quando fala do Islão? Ao longo do capítulo “O Problema com o Islão” percebemos que o autor se refere a todos os países de maioria muçulmana. Por outras palavras, inclui todos os muçulmanos, sejam eles liberais ou conservadores, árabes, persas, indianos, malaios, indonésios, africanos... todos eles são colocados por Sam Harris do mesmo lado de uma trincheira imaginária. Não seria mais objectivo considerar que o problema existe apenas devido às acções de regimes ditatoriais e grupos extremistas estabelecidos em alguns do Médio Oriente?

Não é isto uma simplificação típica de um modelo de pensamento radical? E não é estranho que seja uma atitude comum de extremistas religiosos e anti-religioso? Não seria possível ser um pouco mais racional? Afinal era isso que se esperava de quem, no mesmo livro, tanto apregoa o uso da razão.


A atitude mental do Islão radical merece ser comparada com outros radicalismos com que o Ocidente já se deparou. Podemos compará-lo com diversos fenómenos de intolerância religiosa que viveram à sombra de poderes instituídos. Desta forma, parece-me pertinente questionar porque é que Sam Harris não faz a comparação dos bombistas suicidas muçulmanos com os kamikazes japoneses da 2ª Guerra Mundial? Não existe algo de comum entre eles? Não acreditam ambos que se sacrificam por uma causa suprema, tentando levar a morte e destruição aos seus inimigos?

É, no mínimo estranho, que Sam Harris não seja capaz de fazer este tipo de comparações. Preferiu simplificações infantis em vez de uma análise racional da situação. Talvez as suas simpatias pelas religiões orientais não lhe tenham permitido fazer essa comparação.

INTERPRETAÇÃO DOS TEXTOS SAGRADOS

N'O Fim da Fé apresentam-se quase seis páginas (p. 129-134) de citações do Alcorão. São frases que, segundo o autor, revelam o carácter violento do Islão. Não é necessário ser muito versado na história do Islão para perceber que os textos do Alcorão revelados em Medina são muito diferentes dos textos revelados em Meca. Segundo vários teólogos muçulmanos, isto implica que a aplicabilidade e a abrangência do texto varia conforme o contexto da revelação.

Mas não é o Sr. Harris o grande defensor do uso da razão na análise da religião? Será a interpretação literal dos textos sagrados o exemplo dessa tão desejada racionalidade? Podemos ignorar o contexto (local e circunstâncias) em que os textos surgiram? Podemos fazer uma mera interpretação literal dos textos e já está? Mas não é exactamente isto o método dos fundamentalistas islâmicos? O uso da razão é mesmo isto?...

É óbvio que o Sr. Harris tem imensos preconceitos contra o Islão. Depois de insistir nas interpretações literais do Alcorão, encontra um versículo que afirma "Não vos mateis uns aos outros" (4:29). Estranhamente o autor prefere não interpretar literalmente este versículo; afirma que é "ambíguo" (p. 128). Conclui-se que o autor não prima pela objectividade...

Ao ler o livro O Fim da Fé, percebemos que o método do autor para avaliar as religiões é fazer uma interpretação literal dos textos e validar esse significado literal contra o senso comum. Nada de procurar sentido metafóricos ou significados implícitos; ficamos por uma leitura simplista. Mas será que o Sr. Harris faz isso com todas as religiões e todos os sistemas de crença?

Sabendo do fascínio de Sr. Harris pelo Budismo, que diria ele da máxima budista "Se encontrares o Buda na estrada, mata-o!" ? Será que também a interpreta literalmente considerando-a um incentivo à intolerância e à violência, uma prova da falsidade do Budismo e da sua influência maligna na história da humanidade? Ou será que por se tratar do Budismo tentaria procurar um significado metafórico, ou uma qualquer mensagem implícita nestas palavras? A resposta a estas questões encontra-se aqui: Killing the Buddha.

É estranho como o Sr. Harris consegue ser mais racional quando analisa textos do Budismo.

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NOTA: Este tema não se esgota por aqui; no próximo post abordarei outros assuntos que Sam Harris escreveu sobre o Islão no livro O Fim da Fé.

2 comentários:

Borges de Garuva disse...

Evidentemente, Marco, tua leitura está empenhada em manter-se na superfície do problema para o qual Sam Harris quer chamar nossa atenção.

Embora nascido e educado numa família cristã católica e atuando profissionalmente numa organização cristã luterana (depois de haver trabalhado durante dois anos como tradutor da Ordem Rosacruz), os textos de Harris têm soado para mim como um convite à lucidez.

Embora, pelas limitações próprias de todos os humanos no sentido de nossa incapacidade de abarcarmos toda a vastidão da realidade com um conhecimento preciso e final, ele possa nem sempre referir-se a tudo com o mesmo grau de lucidez, pontuar-lhe as incompletudes negando-lhe o objetivo principal é jogar-se na armadilha que ele armou para caçar os que se dizem "liberais" e, no fundo, são fundamentalistas.

Borges de Garuva/Joinville - Brasil

Marco Oliveira disse...

Borges de Garuva,

A ideia mais válida que o Sam Harris lança é o convite à racionalidade quando se analisa religião. E eu concordo com isso. Fé e razão devem andar a par.

Mas ele também tem outras ideias com que eu concordo e que falarei mais adiante.