No início de 2016, vários relatos de testemunhas de massacres na cidade iraquiana de Mosul começaram a espalhar-se pelo mundo. Diziam que o ISIS - o chamado Estado Islâmico - tinha executado publicamente 19 meninas e mulheres Yazidi prisioneiras inocentes por se recusarem a ter relações sexuais com combatentes do ISIS. As mulheres foram queimadas vivas em gaiolas de ferro, afirmaram várias fontes.
Só o acto de escrever estas palavras já me revolta. Lê-las provavelmente também revoltam o leitor.
Tal como acontece com todas as demonstrações de vil selvajaria humana, eventos como este despertam várias emoções dentro de nós - raiva, fúria, vingança. Queremos compensar esses crimes punindo severamente os perpetradores. Naturalmente, queremos vingança por actos tão hediondos. Após essas mortes horríveis, surgiram apelos de todo o mundo exigindo uma retribuição severa, pedindo que os assassinos fossem levados à justiça, julgados, condenados e executados - pelo fogo.
Supondo que os assassinos tivessem sido capturados, o que recomendaria o leitor que se fizesse com eles? Concordaria que um castigo apropriado seria exactamente o mesmo tipo de terror, dor e morte que infligiram àquelas mulheres inocentes? Esse tipo de justiça olho-para-olho - típica do Antigo Testamento - ainda poderia ser aplicado no mundo de hoje? Temos o direito, enquanto comunidade global, de queimar aqueles que queimam as suas vítimas inocentes?
Os ensinamentos Bahá’ís aparentemente dizem sim a essa questão:
Se alguém destruir intencionalmente uma casa pelo fogo, também a ele queimareis; se alguém deliberadamente tirar a vida de outro, também a ele o matareis. (Bahá'u'lláh, The Most Holy Book, p. 41)Seguidamente, no mesmo livro, porém, a Casa Universal de Justiça escreve:
Em relação ao incêndio, isso depende do "casa" que é queimada. Há, obviamente, uma tremenda diferença no grau de ofensa entre a pessoa que incendeia um armazém vazio e a que deita fogo a uma escola cheia de crianças. (Idem, P. 204)Isto indica que existe na lei Bahá’í um reconhecimento do "nível de ofensa" entre crimes contra a propriedade e crimes contra pessoas. Mas no caso das supostas execuções do ISIS, é difícil imaginar um crime mais cruel e premeditado cometido contra tantas pessoas absolutamente inocentes.
Mesmo uma percentagem significativa dos que se opõem à pena de morte, na grande maioria dos casos afirma que a pena de morte deve ficar reservada para alguns dos crimes humanos mais hediondos. Assassinatos em massa, genocídio, tortura e crimes horríveis contra os inocentes geralmente caem nessa categoria. Então, vamos considerar essa questão numa perspectiva Bahá’í: quando - se é que alguma vez – devemos usar a pena de morte?
Em primeiro lugar, os ensinamentos Bahá’ís dizem claramente que apenas a autoridade governamental devidamente constituída pode tomar a decisão final sobre tirar uma vida; nenhum indivíduo, grupo ou organização religiosa pode fazer a mesma coisa:
Os instrumentos que são indispensáveis à protecção imediata, à segurança e à tranquilidade da raça humana foram confiados às mãos dos governantes da sociedade humana. Este é o desejo de Deus e o Seu decreto... (Gleanings from the Writings of Baha’u’llah, CII)Em segundo lugar, os ensinamentos Bahá’ís dizem que as velhas leis religiosas de um olho por olho foram revogadas e substituídas por novas leis mais humanas:
... de acordo com a lei da Torá se um homem cometesse roubo de um determinado montante, eles cortariam a sua mão. Será praticável e razoável nos dias de hoje cortar a mão de um homem por roubo de um dólar? Na Torá há dez sentenças relativas ao assassinato. Poderiam ser aplicadas hoje? Sem dúvida que não; os tempos mudaram. De acordo com o texto explícito da Bíblia, se um homem alterar ou violar a lei do sábado, ou se ele mexer no fogo durante o sábado, ele deve ser morto. Hoje essa lei está revogada. A Torá declara que se um homem disser uma palavra desrespeitosa ao seu pai, ele deve sofrer a pena de morte. Isso é possível aplicar isto agora? Não; as condições humanas sofreram mudanças. ('Abdu'l-Bahá, The Promulgation of Universal Peace, p. 404)
[Na Torá] há dez mandamentos sobre o assassino. É possível fazer isso? Essas dez sentenças, relativas ao tratamento dos assassinos, podem ser aplicadas? Os tempos modernos são tais que até a questão da pena de morte - a forma que algumas nações decidiram aplica-la a um assassino - é uma questão debatida. Os sábios estão a consultar quanto à sua viabilidade. ('Abdu'l-Bahá, Star of the West, Volume 4, p. 123)
Moisés viveu no deserto. Não havia prisões para castigar os criminosos. Portanto, de acordo com a exigência do tempo, a lei era olho-por-olho e dente-por-dente. É possível aplicar essa lei agora? Na Torá há dez mandamentos referentes ao assassinato. Estas dez sentenças, relativas ao tratamento dos assassinos, não podem ser aplicadas agora. Mesmo em relação à pena de morte, os sábios estão estudando esta questão, pois sustentam que a pena capital deve ser abolida. ('Abdu'l-Bahá, Mahmud’s Diary, p. 320)Em terceiro lugar, e talvez o mais importante, a lei Bahá’í proíbe matar:
... que nenhuma alma mate outra; isto, na verdade, é o que vos foi proibido num Livro que estava oculto no Tabernáculo da glória. O quê? Mataríeis aquele que Deus despertou, a quem Ele dotou de espírito por um sopro Seu? Severa, pois, seria a vossa transgressão perante o Seu trono! Temei a Deus, e não levanteis a mão da injustiça e da opressão para destruir o que Ele próprio criou; pelo contrário, andai no caminho de Deus, o Verdadeiro. (Bahá'u'lláh, The Most Holy Book, p. 45)Será que isso significa, no contexto da lei Bahá’í, que qualquer uso de força mortal por um governo é errado - ou só se aplica a indivíduos? Vamos explorar essa questão crucial no próximo texto nesta série.
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Texto original: Who has the Right to Kill another Person? (www.bahaiteachings.org)
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David Langness é jornalista e crítico de literatura na revista Paste. É também editor e autor do site bahaiteachings.org. Vive em Sierra Foothills, California, EUA.
1 comentário:
Boa tarde.
Li seu artigo e gostaria de expressar a minha opinião, apesar de não seguir a mesma doutrina religiosa que expõe em suas respeitáveis citações.
Penso que a abolição da pena de morte foi um passo na caminhada evolutiva da humanidade, o que não significa deixar o criminoso impune já que este sofrerá restrição em sua liberdade e a Vida irá lhe impor ainda nesta série existencial as consequências inevitáveis pelo ato praticado.
Tenho pra mim que a pena de morte certamente decorreu da necessidade que havia nos tempos de Moisés de tirar o mal do meio do povo, algo que talvez possa ser ainda justificável no serviço militar durante uma circunstância extrema de guerra, única hipótese que a legislação brasileira permite a sua adoção.
Por outro lado, é certo que a repressão do mal pode justificar o uso da força pelos governos em que, nas operações de paz, mortes podem ocorrer da mesma maneira que se justifica a legítima defesa. Mas aí já seriam excludentes de ilicitude. Diferente de quando se tem o criminoso já acauteladamente preso e sendo sentenciado por um tribunal.
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