Os artistas, por vezes, dizem-nos que somos completamente loucos, ou mais educadamente, que estamos a trabalhar contra os nossos melhores interesses.
Mas entre os artistas, e especialmente, parece-me, entre os poetas modernos que se entregam à exploração do seu próprio interior para nosso benefício, os poetas confessionais parecem ter as questões mais intensas. E entre estes poetas confessionais existem uns quanto que parecem empenhados na arte de morrer – ou pelo menos, dedicam uma parte significativa da sua arte a descrever a sua preocupação com o desejo de alcançar a não-existência.
Quer acreditemos que eles descobriram verdades tão dolorosas que se se torna preferível abandonar esta vida em vez de suportar um mundo desequilibrado, ou que eles estão demasiado fragilizados ou feridos para suportar o embate da angústia interior, a verdade é que estes poetas querem mesmo morrer. Não estão apenas a chamar a atenção para si próprios. Desejam sinceramente morrer e sentem que é importante dar-nos a conhecer essa sensação, para que outras pessoas que experienciem a mesma emoção não se sintam totalmente isoladas ou culpadas.
Imediatamente podemos pensar em Silvia Plath, que em 1963 enfiou a cabeça num forno a gás, ou em John Berryman que em 1972 saltou de uma ponte em Minneapolis, ou em Anne Sexton ligou o motor do carro numa garagem fechada.
Se compararmos a arte de viver com a arte de morrer, então percebemos que há aqui algo errado. Um estudo revelador chegou mesmo a comparar as características dos poetas que se suicidam com o trabalho dos seus contemporâneos, também confessionais, que não se suicidam.
O que essa investigação concluiu não foi que os poetas que optaram pelo suicídio tinham mais contacto e estavam mais desiludidos com a degradação moral da sociedade do que os seus contemporâneos; pelo contrário, e desde o início, estas personalidades demostraram uma preocupação consigo próprias. Esta investigação também detectou que até a linguagem utilizada pelos poetas suicidas alude ao seu sentido de incapacidade para comunicar a sua agitação interior aos outros - o estranho dilema dos artistas que comunicam numa linguagem cheia de subtilezas.
Esta observação leva-me à conversa do meu irmão com o seu amigo sobre o nosso desejo de felicidade face ao nosso desejo de conhecer a realidade. Os dois dificilmente são compatíveis ou mutuamente exclusivos (rever esta frase)
Resumidamente, a maioria dos artistas que se suicida tem aquilo que reconhecemos como uma doença de origem psicológica chamada depressão clínica; não o fizeram porque eram demasiado fracos para aguentar as vergastadas da vida e o escárnio do tempo, ou um mundo em desordem. A depressão não os leva a escrever poesia; a doença mental não é o principal ímpeto de um artista. No entanto, durante algum tempo, nas décadas de 1960 e 1970, houve quem desse um aspecto romântico ao suicídio (que actualmente se manifesta em diversas formas de auto-mutilação), como se a auto-aversão ou o pessimismo total ajudasse alguém a compreender a vida (e a morte) ou pudesse transformar alguém num artista (ou numa vedeta popular) qualificado(a).
Não há dúvida que ter consciência total dos seus próprios problemas e dos problemas do mundo ajudou a desencadear a depressão entre os poetas confessionais – mas o seu desespero foi o resultado de uma patologia fisiológica e não de um temperamento artístico ou de uma análise profunda da realidade. De igual modo, o seu talento não derivava da sua doença. A sua visão artística, compreensivelmente, focava-se nos sentimentos e experiências mais fortes que tinham vivido – a sua luta interior com a doença que os atormentava, um combate que ninguém compreendia completamente e onde ninguém os podia ajudar.
Os seus contemporâneos, também eles talentos notáveis que se dedicaram à poesia confessional, não tinham essa doença e por isso tiveram tendência a focar a sua arte em temas do macrocosmo, no mundo exterior, assuntos externos filtrados pelo seu próprio ser – mas sem pôr fim ao seu próprio ser. Para estes poetas de linha confessional, o seu ser era um ponto de vista, uma lente de observação, e não o objecto da sua investigação ou estudo.
Sylvia Plath levou a arte até à morte, mas o seu sentido de morte – ou de viver com desejo de morrer – não fez dela uma grande artista, pois já o era. O poder da sua arte deriva do seu génio com a sua linguagem e utilização de símbolos e imagens.
A verdade é que muitas pessoas poem fim às suas vidas sem demonstrar qualquer capacidade ou temperamento artístico. Mas o efeito da depressão clínica é tal que quem a experimentou não consegue imaginar o que é o seu próprio ser sem o efeito depressivo, nem consegue lembrar-se de um momento em que as coisas tenham sido diferentes.
Inversamente, quando uma pessoa deprimida se afasta - mesmo que temporariamente - dessa condição (da fase activa da doença), é difícil para ela recordar ou imaginar como este desequilíbrio químico pode tornar a psique tão miserável e desequilibrada. Mas, tal como Bahá’u’lláh afirma, a própria alma não é afectada com esta experiência:
Sabe tu que a alma do homem está exaltada acima, e é independente de todas as enfermidades do corpo ou da mente. Que uma pessoa doente mostre sinais de fraqueza isso deve-se às obstruções que se entrepõem entre a sua alma e o seu corpo, pois a alma em si permanece imune a qualquer padecimento corpóreo. (Gleanings from the Writings of Baha’u’llah, LXXX)Este aspecto da doença também ajuda a explicar porque é que a depressão é tão isoladora e abrangente, porque é literalmente impossível transmitir a alguém que não vivenciou esta situação qual é a sensação. Se não existe condição “comparável”, então o doente não só está preso no seu sofrimento de desespero existencial, de pânico e aflição induzidos pela depressão, mas também fica completamente incapaz de explicar a alguém o que é que está mal.
Uma vez um amigo psiquiatra disse-me que se eu, como escritor, conseguisse produzir uma descrição verbal da depressão do ponto de vista subjectivo do doente, então conseguiria ganhar um milhão de dólares. Respondi-lhe: “Nunca tiveste uma depressão, pois não?”
Ele nunca tinha tido uma depressão; e para ele isso era uma limitação na forma como tratava os seus pacientes. Aqui estava esta doença terrível, tão grave que podia causar a morte – o que significa que é tão grave quanto um problema cardíaco, cancro ou qualquer outra doença fatal. E aqui estava um médico com boa formação que tentava compreender e tratar uma doença que não se conseguia ver numa radiografia, e que não se consegue detectar por outros meios que não seja expressão subjectiva do paciente sobre o seu próprio estado emocional, uma condição que desafia a linguagem e qualquer comparação.
E se, na resposta ao amigo, o meu irmão poder dito que preferia estar sempre em contacto com a realidade em vez de viver uma existência feliz mas ilusória, atrevo-me a dizer que o meu irmão teria preferido ser menos capaz e menos inteligente se tivesse tido alguma alternativa ao facto de ter de suportar uma depressão insuperável em todos os momentos da sua existência.
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Texto original: Art and Suicide: Poets, Depression, and the Desire to Die (www.bahaiteachings.org)
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John S. Hatcher é formado em Literatura Inglesa pela Universidade de Vanderbilt e Doutorado em Literatura Inglesa pela Universidade da Georgia (EUA). É professor Emérito na Universidade de South Florida (Tampa, EUA). É também conhecido como poeta, palestrante e autor de numerosos livros sobre literatura, filosofia e teologia e escrituras Baha’is. Entre as suas obras contam-se Close Connections; From the Auroral Darkness: The Life and Poetry of Robert E. Hayden; A Sense of History: The Poetry of John Hatcher; The Ocean of His Words: A Reader's Guide to the Art of Baha'u'llah; and The Purpose of Physical Reality; The Kingdom of Names.
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