quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

O Mundo Otomano, no olhar de Eça de Queirós

Quando um Bahá’í português fala da sua religião, é inevitável que faça mencione a referência de Eça de Queirós ao Báb no livro «A Correspondência de Fradique Mendes». É natural que assim seja. Afinal, trata-se de um dos grandes nome da literatura portuguesa referindo as origens da nossa religião, pouco depois desta ter surgido em meados do século XIX na Pérsia.

Estranhamente, as referências que os Bahá’ís fazem a Eça de Queirós, esgotam-se nessa longa citação. Será que não há nada mais nos textos do autor português que seja relevante para a Fé Bahá’í?

Eça esteve no Egipto em 1869 e 1870, tendo assistido à inauguração do Canal do Suez. As suas impressões dessa viagem foram registadas e publicadas postumamente pelo seu filho num volume intitulado "O Egipto". Outras obras e personagens reflectem o interesse de Eça pelo Médio Oriente: “A Relíquia” possuiu uma narração de uma viagem do protagonista - Teodorico Raposo - à Terra Santa. E o cosmopolita Fradique Mendes não é imune a influências orientais.

"As Cartas de Inglaterra" (publicadas na Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro, entre 1880 a 1896) e as "Crónicas de Londres" (publicadas no jornal portuense A Actualidade”, entre 1877 a 1878) reúnem um conjunto de análises sobre a vida inglesa e vários comentários sobre acontecimentos internacionais. Nestes textos são particularmente interessantes as descrições da guerra Russo-Turca (1877-1878) e a Crise no Egipto (que culmina com o bombardeamento de Alexandria, 1882).

Constantinopla, sec. XIX

Nas vésperas do conflito militar com a Rússia, Eça descreve o Império Otomano com as seguintes palavras:
Há um ano que a Sublime Porta vive num estado de humilhação permanente. A Europa tem-na tratado como um seu subalterno dependente e inconsciente: impõe-lhe constituições, governa as suas finanças, discute a sua administração, usa da sua capital como de uma sala de hotel para instalar conferências, manda comissões impertinentes investigar os seus massacres domésticos, dá razão às províncias que se insurreccionam, força-a a constantes renovações do funcionalismo, censura as suas despesas, decide nos seus tribunais, obriga-a a nomear um parlamento, repreende-a, diz-lhe «chut!», desacredita-a, ralha-lhe, ameaça-a, não admite que ela tenha um espírito de raça, uma tradição histórica, uma necessidade religiosa e trata-a absolutamente como se ela fosse uma povoação de negros perdida no Sul da África.

Esta situação não podia durar. O Turco é inteligente, orgulhoso, bravo, teimoso, fanático; um dia viria em que, enfastiado de ver em roda de si tantos pedagogos a querer dirigi-lo e tantos ferrabrases a franzirem-lhe a testa – devia necessariamente dar dois passos a trás e meter a espingarda à cara.

Foi o que sucedeu.
Em 1882, após diversas pressões exercidas pela Inglaterra e França sobre o Egipto, ocorrem motins na cidade de Alexandria onde são mortos dezenas de Europeus. Em resposta, a frota britânica bombardeou a cidade, sob o pretexto de impedir que os egípcios reforçassem umas fortificações portuárias. Após o bombardeamento, deflagraram fogos na cidade, e durante vários dias reinou o caos.

Bombardeamento de Alexandria, 1882

Eça foi profundamente irónico ao descrever o comportamento dos ingleses e não escondeu o seu choque pelo sucedido:
Hoje, à hora em que escrevo, Alexandria é apenas um imenso montão de ruínas. Do bairro europeu, da famosa Praça dos Cônsules, dos hotéis, dos bancos, dos escritórios das companhias, dos cafés-lupanares resta apenas um confuso entulho sobre o solo, e aqui e além uma parede enegrecida que se vai aluindo.

Pela quarta vez na história, Alexandria deixou de existir.
Estes são apenas duas das muitas referências que Eça de Queirós faz ao mundo Otomano do final Séc. XIX e aos seus problemas com as potências europeias. O Império era acossado a norte pela Rússia, a sul pela Inglaterra e a oeste pelos austrohúngaros. A isto somavam-se as tensões inevitáveis que existiam num império multi-étnico e culturalmente diversificado.

Era este o contexto de tensão política e social em que Bahá'u'lláh, e o pequeno grupo de exilados que O acompanhavam, viveram durante os exílios em Adrianoplolis e Akká. E é exactamente para nos ajudar a perceber um pouco desse contexto, que o livro “Cartas de Inglaterra e Crónicas de Londres” merece uma leitura atenta por parte dos Bahá’ís que falam português.

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