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Por Margarida Santos Lopes
Os sete líderes da maior minoria religiosa iraniana estão presos há mais de um ano sem julgamento. Algumas acusações podem condená-los à morte, mas o Governo de Teerão sabe que eles são inocentes
Às 3h30 de 14 de Maio de 2008, agentes secretos chegaram a casa de Fariba Kamalabadi, em Teerão. Traziam um mandado de busca. Demoraram três a quatro horas a revistar tudo. Detiveram-na e confiscaram vários objectos, desde computadores a fotos da família. Iraj Kamalabadi, um dos cinco irmãos, que vive na Califórnia, denuncia: "Foi um plano concertado para deter todos os líderes bahá'is. As suas moradias foram invadidas à mesma hora."
A psicóloga Fariba, de 46 anos, foi levada para a prisão de Evin no mesmo dia que o empresário Jamaloddin Khanjani, de 75, o industrial Afif Naemi, de 47, o engenheiro agrícola Saeeid Rezaie, de 51, o antigo assistente social Behrouz Tavakkoli, de 57, e o optometrista Vahid Tizfahm, de 37. A professora Mahvash Sabet, de 55, já tinha sido presa a 5 de Março de 2008, em Mashhad, para onde fora convocada pelo Ministério dos Serviços Secretos, sob o pretexto de responder sobre um funeral no cemitério bahá'i.
Depois de meses de isolamento, só muito recentemente os sete dirigentes da maior minoria religiosa do Irão ficaram a conhecer acusações formais: "espionagem a favor de Israel, insulto a santidades religiosas, propaganda contra a República Islâmica e corrupção na Terra". Iraj Kamalabadi, numa entrevista ao PÚBLICO, por telefone, não se conforma: "Eles são inocentes e só estão presos por serem bahá'is".
A lei prevê a pena de morte para espionagem e "corrupção na Terra", mas o Centro de Defesa dos Direitos Humanos do Irão, cuja presidente, a Prémio Nobel da Paz Shirin Ebadi, integra a equipa de advogados, garante que não há provas para os condenar e recomenda que o julgamento, marcado para 18 de Outubro, após vários adiamentos, seja aberto ao público.
Iraj confia em que as pressões internacionais salvem a sua irmã e os outros do fim que tiveram, depois da revolução islâmica de 1979, as primeiras assembleias espirituais nacionais bahá'is no Irão - conselhos consultivos de nove membros eleitos pelos crentes e que regem a vida de uma comunidade sem clero. Em 21 de Agosto de 1980, os nove foram raptados. "Nunca mais ninguém os viu, estarão mortos", afirma o consultor que, em 1977, foi estudar para Boston e não mais pôde regressar a casa.
A 27 de Dezembro de 1981, na segunda assembleia, só um dos nove sobreviveu ao pelotão de fuzilamento. Em 1984, da terceira assembleia, quatro dos nove foram executados.
"Em meados dos anos 1980, o Governo decretou que as assembleias espirituais deviam ser dissolvidas", conta Iraj. "Como os bahá'is são obedientes às leis dos países onde vivem, a comunidade dissolveu as suas instituições. Foi então criada, com consentimento das autoridades, uma associação informal, os Yaran [em persa, significa "Amigos que ajudam"], que administra as necessidades básicas dos bahá'is." Os sete detidos em Março e em Maio eram os líderes Yaran.
O cobertor no chão
A perseguição não é novidade para Fariba Kamalabadi, mãe de três filhos que sonhava ser médica mas que, tal como todos os bahá'is, em 30 anos de revolução, não pôde entrar na universidade. "É a terceira vez que é detida", refere Iraj. "A primeira foi há cinco anos; a segunda há três anos e meio. Também o nosso pai esteve na prisão. Levaram-no de pijama. Severamente torturado, morreu pouco depois de ser libertado, com problemas cardíacos agravados pelos maus tratos."
Iraj acredita que a sua irmã não esteja a ser molestada fisicamente, mas alerta para a degradação das condições em que ela e os outros seis líderes se encontram. "Nos primeiros meses de isolamento, foram submetidos a duros interrogatórios", conta. "As celas não têm ventilação, nem luz natural. Deram-lhes um cobertor e uma almofada. A comida é horrível, e as porções têm vindo a ser gradualmente reduzidas. Os utensílios onde os alimentos são cozinhados e servidos não são lavados. Até o pão é bolorento."
Desde os protestos contra os resultados das eleições presidenciais de Junho, adianta Iraj, as celas "ficaram sobrelotadas com novos presos. Muitos contraíram doenças. A minha irmã estava a tomar medicamentos para o colesterol e batimentos cardíacos irregulares. Na prisão, não lhe permitem tratar-se. Está gravemente doente. Quando a minha mãe foi autorizada a visitá-la, há três meses - pela primeira vez - não reconheceu a própria filha: só pele e osso. Todos sofrem de má nutrição. A pele revela os sintomas de não estar exposta ao sol. Porque a maior parte do tempo é passada a dormir ou sentados no chão, têm problemas de ossos."
Uma "flor" na prisão
No meio da adversidade, Fariba conseguiu um pequeno milagre. "Um dia, quando se aproximava o 14.º aniversário da filha mais nova [Taraneh Taefi], não encontrando nada para lhe dar de presente, reparou que na refeição vinha uma cenoura podre", conta Iraj. "Notou que na base da cenoura havia raízes a rebentar. Embrulhou-a em papel humedecido em água, e os rebentos começaram a crescer, mesmo sem luz solar. Quando a família a foi visitar, ela ofereceu a cenoura à filha como prenda de anos. Foi um momento muito comovente."
Iraj repete que não há qualquer justificação para os sete líderes dos Yaran não serem libertados. As autoridades "sabem que as acusações são falsas, mas infligem dor devido a uma profunda hostilidade face aos bahá'is."
Apesar de tudo, sente-se encorajado com as mudanças de mentalidade que a sociedade tem demonstrado. "Em Fevereiro, um grupo de académicos, escritores, jornalistas, artistas, activista iranianos publicou uma carta aberta intitulada Nós temos vergonha. Num gesto sem precedentes, reconheceram ter ignorado, desde há 150 anos, o sofrimento dos bahá'is."
Inquirida sobre as expectativas em relação às próximas negociações do Irão com o grupo 5+1 (EUA, Reino Unido, França, Rússia, China e Alemanha), Diane Ala'i, representante da comunidade bahá'i internacional na ONU, em Genebra, diz ao PÚBLICO que só tem um pedido: "Ponham os direitos humanos na agenda e não os sacrifiquem em nome de outros interesses."
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Roxana Saberi ao PÚBLICO
"A fé não as deixa ter medo de morrer"
O namorado de Roxana Saberi fazia anos a 31 de Janeiro. A sua "rapariga iraniana, de olhos japoneses e nacionalidade americana", faltou à promessa de saírem juntos porque, este ano, entrou nesse dia na penitenciária de Evin, em Teerão. E foi aqui, numa cela da "secção 209", reservada aos prisioneiros de consciência, que ela conheceu Mahvash Sabet e Fariba Kamalabadi, duas líderes da comunidade bahá'i detidas desde Março e Maio de 2008, respectivamente.
"Mahvash esteve em isolamento durante os primeiros seis meses e Fariba durante quatro", relata Saberi numa entrevista que aceitou dar ao PÚBLICO, por e-mail, depois de deixar claro que não falaria da sua própria experiência. Pela sua vívida descrição, não é difícil, porém, perceber que as condições a que foi submetida até à libertação, a 11 de Maio, não foram muito diferentes.
"A cela em Evin tem dois por três metros", precisou Saberi. "Junto ao tecto havia duas pequenas janelas fechadas, cobertas por placas metálicas com buracos. Uma luz intensa acesa, permanentemente. O chão de cimento estava coberto por um fino tapete castanho. Dorme-se em cobertores sobre o chão. Havia uma bacia, mas, para usar a sanita ou o chuveiro, era preciso pressionar um botão na parede para chamar uma guarda que deixasse ir à casa de banho. Nos primeiros meses, [Mahvash e Fariba] quase não tinham visitas da família. Não tinham caneta nem papel. Apenas os livros islâmicos permitidos pelas autoridades. Só vários meses depois tiveram acesso a outros livros e a um televisor."
"Não fiquei com a sensação de que Mahvash e Fariba temessem a morte", diz a filha do iraniano Reza e da japonesa Akiko. "Pelo contrário, estão dispostas a aceitar o que lhes for exigido para manter a sua fé e o bem-estar da comunidade bahá'i do Irão. Acredito que terem fé e princípios ajuda a que se mantenham espiritual e psicologicamente fortes, apesar das pressões que lhes são impostas e das violações dos seus direitos básicos."
Da secção 209, "muitas outras prisioneiras entraram e saíram, mas Mahvash e Fariba ficaram para trás", lamenta Roxana, uma das que conseguiram sair quando o regime percebeu que a condenação internacional pela sua prisão o prejudicava.
Repórter freelance para vários jornais, rádios e cadeias de televisão desde que se mudara para Teerão em 2003, Roxana Saberi foi primeiro acusada de ter comprado uma garrafa de vinho e depois de trabalhar sem credenciais. Em Abril, surgiu a acusação de espionagem e a condenação a oito anos de cadeia. A 11 de Maio, a sentença foi reduzida, após um recurso, para dois anos de pena suspensa. Quatro dias depois, deixaram-na partir para os EUA. Entre a primeira sentença e a libertação fez uma greve de fome de duas semanas, que terminou com o internamento numa clínica.
Roxana, de 32 anos, Miss Dakota 1997 e quase Miss América 1998, já estava há dez dias em Evin quando a deixaram contactar o pai. Foi o pai que informou o namorado, o cineasta Bahman Ghobadi, a quem ela mentira, num telefonema abruptamente interrompido, dizendo que faltara à sua festa de anos porque precisara de ir a Zahedan. Ele, cujos filmes se vendem no mercado negro depois de banidos, seguiu-a até Zahedan, mas não a encontrou. Foi então que decidiu escrever uma carta aberta ao regime: Shame on you; shame on us.
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Perseguições começaram no século XIX
Mais de 20 mil mortos em 150 anos
Os bahá'is são perseguidos no Irão desde que a sua religião foi fundada em 1844, mas a revolução islâmica de 1979 parece ter feito da extinção desta comunidade - cerca de 300 mil pessoas - um dos seus objectivos ideológicos, negando-lhe os mais básicos direitos de cidadania.
As perseguições começaram com Báb, o primeiro profeta, várias vezes preso até ser fuzilado, em 1850. O sucessor, Bahá'u'lláh, foi preso e forçado ao exílio: morreu na Palestina Otomana, em 1892. Para os muçulmanos xiitas do Irão, a ideia de que poderia haver "mensageiros de Deus" depois de Maomé era uma "heresia".
Se os bahá'is foram responsáveis por revoltas contra a dinastia Qajar, incluindo uma tentativa de assassínio do xá Nasir al-Din Shah, em 1852, com Bahá'u'lláh adoptaram uma filosofia de obediência e lealdade ao Governo. A nova religião continuou, porém, a ser vista como uma ameaça teológica (e política) ao xiismo.
De 1917 a 1979, sob o reinado do primeiro xá Pahlavi, Reza Khan, os bahá'is não eram autorizados a ter as suas escolas e os funcionários públicos foram despromovidos ou despedidos. Os casamentos dos bahá'is não eram reconhecidos -os casais podiam ser presos por adultério e os filhos considerados "ilegítimos". Com a chegada ao poder do ayatollah Khomeini, os bahá'is foram acusados de "associação ao regime do xá, colaboração com a polícia secreta SAVAK, oposição à revolução islâmica e espionagem a favor de Israel."
À acusação de serem "heréticos" e "inimigos do islão", os bahá'is lembram que a sua fé é reconhecida como religião independente, até por juristas muçulmanos. Quanto a serem "agentes do sionismo", insistem que ela se baseia no facto de o seu profeta, Bahá'u'lláh, estar sepultado no monte Carmelo, onde morreu em exílio forçado - quando Israel ainda não existia -, e de a sede internacional (Casa Universal da Justiça) funcionar em Haifa. Face à acusação de estarem "envolvidos em prostituição", lembram que os seus rituais de casamento não são reconhecidos e por isso as mulheres bahá'is são tratadas, pelo Governo, como "prostitutas". Quanto à acusação de "adultério e imoralidade", vêem-na como a recusa em aceitar uma religião que defende a igualdade entre homens e mulheres e não aceita a segregação.
Desde a revolução islâmica de 1979, pelo menos 200 bahá'is foram mortos ou executados no Irão, elevando para mais de 20 mil as vítimas das perseguições iniciadas há 150 anos. M.S.L.
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