Não imagino quão dolorosa seja a experiência de ter de abandonar o próprio país, de partir para um exílio. Percebo que essa experiência seja ainda mais dolorosa para os idosos. No outono da vida, ter de mudar de ambiente, de rotinas, ter de deixar os amigos e procurar novas amizades num país onde se fala uma língua estranha só pode ser uma experiência difícil.
Com o fluxo de bahá’ís iranianos para o nosso país acabei por conhecer alguns idosos iranianos. Por detrás da barreira linguística, da diferença de idades, dos hábitos culturais consegui perceber neles uma experiência de vida nada fácil no Irão.
Um desses idosos vivia com o filho e alguns netos. Era o avô que andava arrastando os pés, curvado; tinha uma voz rouca. Cumprimentava-me sempre com dois beijos na face como se eu fosse mais um dos netos. Certa vez, quando almoçávamos juntamente com toda a família, a televisão estava ligada; a RTP tinha suspendido a emissão a mostrava apenas a mira técnica ao som de música clássica.
De tempos a tempos, o avô olhava para a televisão; lá estava a mira técnica e a música clássica. A dado momento disse qualquer coisa em persa. Traduziram-me: “O avô diz que no dia da revolução no Irão a televisão também estava assim”. Era a preocupação legitima, normal de quem provavelmente passou as passas do Algarve com a revolução islâmica. Pedi que lhe dissessem que não havia revolução em Portugal; a televisão era mesmo assim. E a preocupação do avô acabou por ali.
A infância do avô começara com perseguições aos bahá’ís. Vivia em Yazd; foi naquela província que as perseguições aos bahá’ís assumiram uma violência inigualável. O pai, que ele nunca conhecera, tinha sido assassinado por ser bahá’í; a porta da casa onde viviam tinha sido arrancada e as autoridades avisaram a mãe dele que viriam acabar o serviço se ela chorasse a morte do marido.
Era difícil imaginar o avô quando era criança, numa família que suportava toda aquela opressão. Era difícil conceber que todos os instantes da sua vida no Irão tivessem sido sob o signo da perseguição. Já com oitenta anos, e pouco antes de sair do Irão, todas as suas propriedades foram queimadas pelos fundamentalistas islâmicos.
Não admira que a mira técnica da RTP o preocupasse.
Em Portimão havia um outro idoso iraniano que morava sozinho. Estava sempre presente em todas as actividades Bahá’ís; sentava-se a um canto e ficava calado a olhar para tudo o que se desenrolava; geralmente pediam-lhe que entoasse uma oração em persa, ao que ele acedia. A língua e a idade eram as maiores barreiras entre ele e os restantes bahá’ís; quando apareciam outros iranianos lá tinha com quem falar; por vezes partilhavam revistas em persa. Quanto mais idosos os iranianos, mais prolongada era a conversa.
Sempre que me cumprimentava, estendia-me a mão e repetia o seu nome: "Haghighi. Haghighi." Alguns iranianos lamentavam-se como aquele homem tinha sido tão activo na comunidade bahá’í no Irão e agora a língua e a idade eram para ele barreiras insuperáveis. Mas em todos os eventos bahá’ís lá estava ele calado e sentado a um canto.
Certa ocasião, numa escola de verão (um encontro bahá’í que dura alguns dias) eu era um dos oradores. Imaginei logo que ele ia estar presente; decidi levar comigo um leitor de CD’s e dois CD’s de música persa antiga (daqueles CD’s que a gente compra mas acaba por nunca ouvir). Com a ajuda de uma amigo iraniano, convidei o Sr Haghighi a escutar aqueles CD’s; aceitou com agrado quando percebeu que era música persa.
Depois era o meu momento de palestrar. Perante uma plateia atenta falei do poder da Palavra de Deus; ao fundo, o Sr. Haghighi, com headphones ouvia música persa; tinha uma expressão de satisfação. Após o almoço, reparei que ele falava animadamente com outros amigos iranianos. Um deles resumiu-me a conversa: "Ele diz que nunca ouviu música tão boa!"
Passados uns anos soube que ele tinha falecido. Longe da sua terra natal, sozinho. Percebi que a única vez que consegui comunicar com ele foi através de dois CD’s de música persa.