Pequeno Livro das Ideias Falsas sobre as Religiões
O diálogo inter-religioso exige que pessoas de diferentes credos se conheçam melhor, desfazendo ideias preconcebidas e distorcidas que obstam a esse diálogo e entendimento. Mais do que uma moda, tornou-se uma necessidade de um mundo globalizado, sequioso de tranquilidade e bem-estar. Alguns crentes poderão questionar até que ponto as suas convicções religiosas poderão sobreviver a um diálogo de verdades plurais. Outros, em que me incluo, entendem que se exige um esforço a cada um de nós para compreendermos quem tem convicções diferentes das nossas.
O Pequeno Livro das Ideias Falsas sobre as Religiões, de Odon Vallet foi publicado há alguns meses no nosso país; é um livro que inevitavelmente desperta a atenção de quem se interessa pelo diálogo inter-religioso. O autor, licenciado em Direito e Ciência das Religiões pela Universidade Panthéon Sorborne (Paris) já publicou vários livros sobre religião, e propôs-se, nesta obra, desfazer uma série de equívocos – para não dizer disparates – que se tornam recorrentes entre muitas pessoas que abordam o tema da religião.
Veja-se por exemplo, quando se combinam temas como religião, pacifismo e violência. A maioria das pessoas no Ocidente associa a violência religiosa ao Islão e o pacifismo ao Budismo; logo no prefácio do livro o autor lembra o conceito de Jihad enquanto esforço de aperfeiçoamento interior e a existência de monges guerreiros tibetanos. Ao longo deste livro, Odon Vallet mostra-nos que as ideias falsas sobre religião surgem em diversas formas: simplificações abusivas (o judaísmo, o cristianismo e o islamismo são três religiões monoteístas), anacronismos (Moisés era judeu), ideias sem sentido (A circuncisão é o sinal da aliança entre Deus e o povo judeu), erros geográficos e culturais (Os muçulmanos são árabes), contradições históricas (A Índia é a pátria da não-violência), e meias-verdades (A Igreja sempre defendeu os poderes estabelecidos).
Para quem gosta debater e estudar diversos temas de religião e frequentemente se depara com tanta ideia distorcida, este livro prometia ser uma agradável surpresa. Ao folheá-lo pela primeira vez, imaginei logo algumas pessoas conhecidas a quem gostaria de oferecer. Não demorei muito a comprá-lo.
Inevitavelmente, este livro reflecte também a formação e as origens do autor. As referências à experiência religiosa em França e a episódios ocorridos naquele país sucedem-se ao logo do texto (exemplos: pags. 98, 103, 110, 138, 143, 155-156). Também a forma como são apresentados alguns assuntos reflectem as raízes cristãs do autor. Por exemplo, a comparação entre o Papa e o Dalai Lama é considerada incorrecta sobretudo porque o primeiro tem mais seguidores do que o segundo [pag. 64]. Também ao referir-se ao pecado original [pag. 148] o autor não hesita em declarar que o ser humano é intrinsecamente pecador (uma perspectiva negativista muito querida a alguns cristãos).
Além disso, em alguns capítulos, Odon Vallet desmonta as ideias erradas sem, no entanto, procurar conceitos comuns e unificadores. Por exemplo, no capítulo com o título "O judaísmo, o cristianismo e o judaísmo são as religiões do livro" [pag. 106], demonstra-se o erro do sentido literal da expressão. Estas três religiões não possuem o mesmo Livro Sagrado; judaísmo e cristianismo possuem vários livros sagrados; o Islão possui um Livro Sagrado. Por seu lado, outras religiões como o Budismo e o Sikhismo também possuem livros sagrados. Estranhamente, o autor não desenvolve o significado da expressão "religião do livro" enquanto sinónimo de revelação divina. Na minha opinião, tão importante como afirmar o erro de uma interpretação distorcida de uma expressão, é sugerir significados alternativos para essa mesma expressão.
Também ao referir o Monoteísmo - para desmontar a ideia "o judaísmo, o cristianismo e o islamismo são três religiões monoteístas" [pag. 112] - o autor apresenta as diferentes concepções de Divindade (o Deus único do Islão versus a trindade cristã; o Deus de Israel e a trindade hindu) para mostrar como a ideia está longe da realidade; no entanto, o autor dedica poucas linhas para mostrar como as religiões tendem para a unidade de culto.
Talvez o irónico deste livro seja o facto de ver Odon Vallet cometer alguns erros semelhantes aos que se propõe corrigir. Por exemplo, uma simplificação anacrónica verifica-se quando se usa a expressão "Estado de Israel" [pags. 61, 157] para designar os antigos Reinos de Judá e Israel; não será isto lançar uma semente de uma nova ideia falsa? Também o Sikhismo é referido como uma "religião guerreira" [pag. 118]; não será isto criar um estereótipo, ao associar uma religião com a violência? Será que o autor conhece os escritos do Guru Nanak? Se o autor consegue evitar este erro ao referir-se ao Islão, porque não consegue fazê-lo ao referir-se ao Sikhismo?
A religião bahá'í - mencionada nas pags. 57, 147, 179, 206 - é referida pelo autor como "um sincretismo entre islamismo, cristianismo, judaísmo e zoroastrismo" [pag. 57]; posteriormente, Odon Vallet afirma que "os cinco milhões de bahaístas veneram Abraão, Moisés, Zoroastro, Buda Jesus Cristo e Maomé, mas a sua religião fundada no Irão em meados do século XIX, não se assemelha a nenhuma outra"[pag. 206]. Se a religião baha'i não se assemelha a nenhuma outra, então como pode ser um sincretismo? E se o próprio autor assume que o termo sincretismo "tem má reputação nos meios científicos e religiosos" e é "sinónimo de confusão infantil e ignorância popular" [pag. 188], não estará ele a lançar um preconceito, uma ideia falsa, sobre uma religião? Afinal, quais foram os seus objectivos ao escrever este livro?
Em resumo: A palavra "religião" pode ser usada para designar diferentes aspectos do fenómeno religioso: os ensinamentos originais dos Manifestantes, as organizações religiosas, o clero, as comunidades dos crentes, as escrituras, as tradições, etc. Ao longo deste livro, Odon Vallet, raramente apresenta o seu entendimento da palavra religião antes de abordar algum ideia. Mesmo assim, o livro tem alguns capítulos muito interessantes, apesar de noutros sentirmos que o autor podia ter ido mais longe. Em algumas referências a religiões não-cristãs, o autor nem sempre consegue ser esclarecedor, chegando por vezes a sugerir ideias tão incorrectas quanto as que pretende esclarecer.
Uma nota final para a tradução. O texto usa o estrangeirismo Corão e vez de Alcorão; também os capítulos do Alcorão são referidos como “Salmos”.
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ABSTRACT: A commentary to the book Petit lexique des idées fausses sur les Religions (Little Book of False Ideas about Religions), by the French author Odon Vallet. The book has several interesting chapters, and in some cases Mr. Vallet seems able to explain misconceptions that originated from the use of popular expressions (such as "Religions of the Book"). He seldom sugests a correct meaning for such expressions. However, in some chapters Mr Vallet makes incorrect references to other religions: the ancient Hebrew kingdoms as "State of Israel", and to Sikhism as a "warrior religion". References to the Baha’i Faith are contradictory: "syncretism” and “not similar to any other".
3 comentários:
Pelos vistos não basta um curso na Sorborne para se estar apto a falar de um tema tão complexo e tão lato!
Gostei da tua abordagem a este livro e certamente vou comprá-lo, pois deve ser bastante interessante apesar de algumas das contradições que apontas.
Ao ler o teu post sugeriu-me um desafio para ti! Porque não escreves tu um livro sobre este tema? Acho que poderias fazê-lo com isenção e conhecimento!
Beijinhos,
Eu a escrever um livro?
Hum... Para isso é necessário muita bagagem.
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