As correntes mais conservadoras do catolicismo costumam descrever o iluminismo como um conjunto de movimentos anti-religiosos, que ambicionavam substituir a fé pela razão, geradores de linhas de pensamento políticos tão nefastos como o comunismo ou o nazismo. Também Bento XVI assume uma posição idêntica; ao ler o livro Fé, Verdade e Tolerância: o Cristianismo e as Grandes Religiões do Mundo, fica-se com a impressão que este foi apenas um movimento filosófico de carácter exclusivista cuja ambição era impor a razão como fonte única de autoridade e conhecimento (p.31). No excerto seguinte, Bento XVI elucida-nos sobre a sua posição
Todo o iluminismo se caracteriza pela vontade de emancipação, primeiro no sentido do lema de Kant: sapere audare – tem a audácia de usar a própria razão. Trata-se, por parte da razão individual, da ruptura com todas as ligações à autoridade, as quais têm todas de ser sujeitas a exame crítico. Apenas o discernimento da razão é aceite como válido. (…) Só a razão é soberana; em última análise, não deve haver outra autoridade a não ser a da razão. Apenas vale o que pode ser compreendido; o que não é razoável, isto é, compreendido, não pode ser obrigatório. (p. 210-211)Como já aqui escrevi uma vez, esta é uma perspectiva muito redutora da história. Na verdade, a Idade das Luzes foi muito mais do que isso. Os historiadores descrevem o Iluminismo como um movimento intelectual, cultural e filosófico que inspirou diversas correntes de pensamento político, social, científico e religioso. Os seus defensores advogavam que a tirania, as superstições e as tradições que tinham dominado a Europa durante a idade média deviam ser substituídas por valores como a liberdade, a democracia e o uso da razão esclarecida.
Estranhamente, ao longo do livro do então Cardeal Ratzinger não se encontra qualquer referência ao iluminismo enquanto movimento inspirador de ideais como a liberdade e a democracia. Para actual o líder da Igreja Católica, o iluminismo é a “pura religião da razão [que] depressa se desmoronou”; é uma máquina de vapor que está a deixar de funcionar (p. 208); é um ideal que retira importância à religião, “restando-lhe pouco mais do que uma função formal no sentido de um cerimonial político” (p.28-29).
Entre os frutos do iluminismo encontram-se vários movimentos revolucionários que se opunham a sistemas repressivos vigentes em matéria política, religiosa e moral. As revoluções francesa e americana são consideradas como tendo sido inspiradas nos ideais iluministas. É claro que não podemos esquecer que o Iluminismo também gerou as suas violências na forma de teorias políticas dogmáticas tão prejudiciais à humanidade como as ortodoxias religiosas que o precederam.
A hostilidade e repressão enfrentadas por ideólogos e filósofos americanos e franceses que - inspirados por ideais iluministas - lutaram contra a tirania e o absolutismo, são semelhantes aos enfrentados pelos primeiros bahá'ís, no Médio Oriente do Séc. XIX. Ambos enfrentaram restrições à liberdade, perseguições por delitos de opinião, eram impedidos de publicar livros e foram alvos de leis injustas publicadas por governos absolutistas. Não é pois de admirar que ambos apreciassem a liberdade de pensamento, a liberdade de imprensa e valorizassem a democracia e o primado da lei.
Nesta perspectiva, o Iluminismo (e o período de modernidade a que este deu origem) não foi o fim de uma idade de ouro, mas antes uma etapa do processo histórico de evolução colectiva da humanidade. E qualquer observador imparcial não negará que a humanidade vive hoje melhor do que vivia nos tempos que precederam o iluminismo. Só por ignorância ou má fé, se poderia sugerir o contrário.
3 comentários:
Isso diz muito de quem ataca o iluminismo não diz?
Pedro,
Ao ler este livro dele fiquei por vezes com a sensação que ele não compreende o mundo de hoje. Sobretudo não entende o sentido da história.
esse texto tem sido muito importante para meu trabalho...que está sendo desenvolvido com base no contexto acima.
Adquiri muitos conhecimentos, que hoje me fazem importante!!!
valeu
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