domingo, 17 de novembro de 2013

Setad: o império financeiro que sustenta o poder de Khamenei

A agência Reuters investigou a organização que rouba os cidadãos comuns iranianos e fortalece o poder do líder supremo iraniano


O texto que se segue é uma tradução de excertos de uma investigação da agência Reuters, publicada no Huffington Post. O texto integral desta investigação pode ser lido aqui (em inglês). Os sombreados são da minha responsabilidade. 
-------------------------------------------------

A iraniana de 82 anos conserva os documentos que sustentam a sua vida numa velha pasta junto da sua cama. Retira-os cuidadosamente e olha para o pequeno texto em persa.

Trata-se de uma ordem judicial que confisca os três apartamentos dos seus filhos num prédio de vários andares em Teerão de que a sua família foi proprietária durante anos. E há uma carta que anuncia a venda de um deles. E há ainda um aviso exigindo-lhe que pague a renda do seu próprio apartamento, no último andar.

Pari Vahdat-e-Hagh acabou por perder as suas propriedades. Foram confiscadas por uma organização que é controlada pelo homem mais poderoso do Irão: o líder supremo Ayatollah Ali Khamenei. Agora ela vive sozinha num pequeno apartamento de três divisões na Europa, a milhares de quilómetros de Teerão.

O nome persa da organização que a perseguiu durante anos é "Setad Ejraiye Farmane Hazrate Emam" - Sede para a Execução das Ordens do Imam. O nome refere-se a um édito assinado pelo primeiro líder da República Islâmica, o Ayatollah Ruhollah Khomeini, pouco antes de falecer, em 1989. Essa lei criava uma nova entidade que geria e vendia propriedades abandonadas nos anos caóticos que seguiram à revolução islâmica de 1979.

Ayatollah Ali Khamenei (foto: Reuters)

A Setad tornou-se uma das mais poderosas organizações do Irão, apesar de muitos iranianos, e o mundo em geral, saberem muito pouco sobre a mesma. Nos últimos seis anos transformou-se num gigante do mundo dos negócios com participações em praticamente todos os sectores da economia iraniana, incluindo a finança, petróleo, telecomunicações, produção de pílulas anticoncepcionais e até criação de avestruzes.

É difícil estimar o valor total desta organização devido ao secretismo das suas contas. Mas segundo a agência Reuters, as propriedades, participações em empresas e outros bens rondam os 95 mil milhões de Dólares (cerca de 70 mil milhões de Euros). Esta estimativa baseia-se em análise de declarações de funcionários da Setad, dados da bolsa de valores de Teerão, websites empresariais e do departamento do Tesouro dos EUA.

Uma única pessoa controla este império económico: Khamenei. Enquanto clérigo principal do Irão, ele tem a palavra final em todas as matérias governamentais. Entre as suas competências encontra-se o controverso plano nuclear da nação, que foi tema de negociação entre diplomatas iranianos e internacionais em Genebra, que terminaram recentemente sem acordo. Será Khamenei que definirá o rumo do Irão nas conversações nucleares e noutros esforços recentes do novo presidente iraniano, Hasan Rouhani, para melhorar as relações com Washington.

Os acólitos do líder supremo elogiam o seu estilo de vida espartano, destacando o seu modesto guarda-roupa e o tapete velho que tem na sua casa de Teerão. A Reuters não encontrou nenhuma evidência que Khamenei use a Setad para enriquecimento pessoal.

Mas a Setad deu-lhe poder. Através da Setad, Khamenei tem à sua disposição recursos financeiros cujo valor rivaliza com os do antigo Xá, o monarca apoiado pelo Ocidente que foi derrubado em 1979.

A forma como a Setad conseguiu esses activos também espelha a forma como a monarquia deposta obteve a sua fortuna: confiscando propriedades. Uma investigação de seis meses conduzida pela Reuters descobriu que a Setad construiu o seu império com base em expropriações sistemáticas de propriedades que pertencem a iranianos comuns: membros de minorias religiosas, como Vahdat-e-Hagh que é Bahá’í, assim como Muçulmanos Xiitas, empresários e iranianos que vivem no estrangeiro.

Organigrama da Setad (fonte: Reuters)

A Setad acumulou uma enorme carteira de propriedades alegando nos tribunais iranianos - às vezes falsamente - que as propriedades estavam abandonadas. A organização possui o monopólio das propriedades confiscadas por decisão judicial e regularmente vende essas propriedades e tenta extorquir pagamentos aos proprietários originais.

O líder supremo também supervisionou a criação de um órgão de decisões judiciais e ordens executivas que permitiu e protegeu as aquisições de activos da Setad. "Nenhuma organização de supervisão pode questionar os seus bens", afirmou Naghi Mahmoudi, um advogado iraniano que deixou o Irão em 2010 e agora vive na Alemanha.

O controlo de Khamenei sobre a política do Irão e as suas forças militares tem sido perceptível ao longo dos anos. A investigação sobre a Setad mostra que há uma terceira dimensão no seu poder: a força económica. O fluxo de receitas geradas pela Setad ajuda a explicar não só como Khamenei resistiu durante 24 anos, mas também alguns dos aspectos em que ele tem mais controle do que o seu venerado antecessor. A Setad dá-lhe os meios financeiros para operar de forma independente do parlamento e do orçamento nacional, isolando-o das confusas lutas internas entre as facções iranianas.

(...)

Quando Khomeini, o primeiro líder supremo, pôs em marcha a criação de Setad, o objectivo era apenas gerir e vender propriedades "sem donos" e canalizar grande parte dos lucros para acções de caridade. A Setad foi usada para financiar a ajuda aos veteranos de guerra, às viúvas de guerra "e aos oprimidos". De acordo com um dos seus co-fundadores, a Setad deveria funcionar apenas durante um período de dois anos.

A Setad construiu escolas, estradas e centros de saúde, e forneceu electricidade e água nas áreas rurais e empobrecidas. Tem ajudado empreendedores em projectos de desenvolvimento. Mas a filantropia é apenas uma pequena parte das operações globais da Setad.

Sob o controle de Khamenei, a Setad começou a adquirir bens para si própria, e manteve a maior parte dos fundos, em vez de os redistribuir. Com essas receitas, a organização também ajuda a financiar o centro do poder no Irão, o Beite Rahbar, ou Casa do Líder, de acordo com um ex-funcionário da Setad e outras pessoas conhecedoras do assunto. O primeiro líder supremo, Khomeini, tinha uma pequena equipa. Para governar hoje o país, Khamenei emprega cerca de 500 pessoas nos seus escritórios administrativos, muitos contratados entre os militares e os serviços de segurança.

Não é possível obter uma imagem completa dos investimentos e lucros da Setad. A sua contabilidade está fora do controlo até mesmo do poder legislativo iraniano. Em 2008, o Parlamento Iraniano aprovou uma lei em que se proibia de monitorizar organizações sob controlo do líder supremo, excepto com a sua permissão.

(...)

Algumas das propriedades sob o controle da Setad foram confiscadas às minorias religiosas, incluindo os membros da Fé Bahá'í, uma religião fundada no Irão, que é considerada heresia pela República Islâmica. Os Bahá’ís são um grupo religioso perseguido no Irão, com alguns seguidores expulsos dos seus postos de trabalho e universidades. Várias lojas Bahá’ís e cemitérios também foram vandalizados.

Números recolhidos pelo escritório da Comunidade Internacional Bahá'í nas Nações Unidas, uma organização não-governamental, mostram que a Setad ocupava - em 2003 - 73 propriedades confiscadas aos seus membros. Estes imóveis valiam então 11 milhões de dólares (cerca de 8 milhões de Euros).

Esse número calculado é apenas uma fracção do valor das propriedades Bahá’ís confiscadas pela Setad. Nesta lista não constam vários imóveis que pertenciam a um Bahá’í chamado Aminullah Katirai. De acordo com sua filha, Heideh Katirai, que agora vive em Toronto, a Setad tem perseguido as propriedades da sua família há mais de duas décadas.

O seu pai era dono de uma casa e um terreno perto da cidade de Hamadan, no noroeste do Irão, declarou. No início de 1990, a Setad confiscou cerca de 750 hectares - todo o terreno possuído pela família na região. Os documentos do tribunal que descrevem a confiscação da propriedade foram analisados pela Reuters; afirmam que Katirai tinha colaborado com o anterior governo do xá. A filha de Katirai afirma que o seu pai nunca teve qualquer vínculo com o governo do xá.

Depois tentou apelar às autoridades governamentais: escreveu uma carta a uma comissão parlamentar, em 1993, afirmando que ele estava a ser perseguido apenas por causa da sua religião.

Em resposta, vista pela Reuters, um representante da Comissão citou o artigo 13 da Constituição do Irão, que diz que apenas zoroastristas, judeus e cristãos são reconhecidos como minorias religiosas e têm o direito de praticar a sua religião, dentro dos limites da lei. "A Fé Bahá’í não está entre as minorias religiosas ", declara-se na tradução da carta. A comissão recusou-se a considerar o seu caso.

Bolsa de Valores de Teerão. Khamenei é uma figura omnipresente (Foto: Reuters)

A Setad não ficou por aqui. Segundo a filha, representantes da Setad apareceram alguns anos mais tarde num prédio de três andares que a família possuía no centro de Teerã há mais de 44 anos. Nessa época, Katirai vivia no rés-do-chão, e os andares superiores estavam alugados.

Segundo a filha, os representantes Setad afirmaram que o proprietário do edifício tinha deixado o país e abandonado o edifício. Katirai repetiu várias vezes aos representantes da Setad que ele era dono do prédio. Eles saíram, e logo depois a Setad iniciou o processo judicial para assumir a propriedade.

Em 2008, Katirai faleceu. Nos últimos cinco anos, a Setad tem tentando expulsar os inquilinos, incluindo o filho de Katirai, enviando avisos judiciais e ameaçando com multas.

"Cada canto daquela casa é um local de recordações para nós", afirmou a filha de Katirai. "Levava lá os meus filhos todas as sexta-feira para visitar a família. "

"O que fez a minha família para merecer esse tipo de tratamento? ", pergunta. "Nós sabemos que o Islão é uma religião de paz. Mas como pode um governo, que afirma ser islâmico, permitir que isto aconteça?"

Mohammad Nayyeri, um advogado que trabalhou no Irão até 2010 e vive agora na Grã-Bretanha, declarou ter tido um caso envolvendo a Setad em que a casa de um homem muçulmano tinha sido confiscada, em parte com base em rumores de que ele tinha convertido à fé Bahá’í e tinha ligações à monarquia.

O homem - Nayyeri recusou a identifica-lo porque ele ainda tem família no Irão – mudou-se para os Estados Unidos logo após a revolução de 1979. O novo governo ficou com para casa do homem, num bairro rico de Teerão.

"O rumor Bahá’í foi uma das coisas que desencadeou isto", disse Nayyeri . "Eles descobriram que a casa estava vazia e que o proprietário tinha deixado o país; assim, eles vieram e apoderaram-se do local". Por volta de 1990, a propriedade foi atribuída à Setad, que a vendeu em leilão.

Nayyeri acrescentou que, em 2008, o filho do proprietário entrou em contacto com ele. Nessa altura, o homem tinha morrido. O filho - que disse ao advogado que o seu pai nunca se tinha convertido à fé Bahá’í e nunca teve ligações com a monarquia - queria limpar o seu nome e tentar recuperar a casa.

Nayyeri afirmou ter apresentado uma queixa contra a Setad e o proprietário actual e desafiou com sucesso a confiscação. Por fim, conseguiu uma ordem judicial que devolveu o imóvel ao filho.

Mas Setad se recusou a devolvê-lo, a menos que o filho oferecesse um "Khoms", um pagamento religioso obrigatório sob a lei islâmica, disse Nayyeri. Eram 50.000 dólares - 20 por cento do valor avaliado do imóvel. De acordo com o advogado, o filho não teve escolha, e pagou.

(...)

-------------------------------------------------
Texto original: Organization That Seizes Properties Of Ordinary Iranians Key To Ayatollah Khamenei's Power (Huffington Post)

Sem comentários: