sábado, 11 de julho de 2020

A atitude radical de ‘Abdu’l-Bahá sobre Unidade Racial

Por Jonathan Menon.



Pouco antes do meio-dia de terça-feira, 23 de Abril de 1912, Abdu’l-Bahá entrou no auditório do segundo andar da capela Rankin, na Howard University, em Washington, DC. No interior, arcos de madeira escurecida, com cerca de 15 metros de comprimento, apoiavam-se em pilares junto às paredes e eram o suporte de um telhado de madeira negra. Um espectador notou que a banda musical começou a tocar quando Ele entrou, e a audiência levantou-se e aplaudiu.

‘Abdu’l-Bahá estava na América há menos de duas semanas. Tinha chegado a Nova Iorque em 11 de Abril, para uma viagem de oito meses naquele continente. Em vez de assumir o papel de forasteiro que observa a vida americana, ‘Abdu’l-Bahá conseguiu colocar-Se no centro de praticamente todos os grandes debates da nação americana. Mas a última coisa que se esperava de um idoso persa - filho de Bahá’u’lláh, o profeta fundador da Fé Bahá’í, que durante 40 anos tinha sido prisioneiro do Império Otomano - era que Ele fizesse o que nenhum outro visitante distinto alguma vez tivera coragem de fazer nos Estados Unidos: que desafiasse publica e continuadamente as ideologias racistas que legitimavam as divisões raciais na vida americana.

Quando partiu dos Estados Unidos, em 5 de Dezembro, ‘Abdu’l-Bahá tinha exposto uma nova visão sobre a unidade racial na América, baseada em argumentos científicos, sociais e morais, actos pessoais e gestos pessoais emocionantes – e especialmente, uma nova linguagem de imagens raciais – que ajudaram os americanos pretos e brancos a superar séculos de desconfiança.

Louis Gregory no Egipto

Vendo em retrospectiva, torna-se claro que ‘Abdu’l-Bahá tinha planeado envolver-Se no debate racial nos Estados Unidos, pelo menos três anos antes. Em 1909, Ele começou a trocar correspondência com Louis George Gregory, advogado afro-americano residente em Washington, D.C, e formado nas universidades de Fisk e Howard. Gregory era presidente da Associação Histórica e Literária de Bethel – a mais antiga organização afro-americana da capital; Gregory era, portanto, um dos mais proeminentes afro-americanos de Washington.

Louis Gregory
Gregory crescera na Carolina do Sul. O seu padrasto nascera livre, mas a sua mãe tinha 14 anos quando o exército da União a libertou da escravatura. O seu avô, um ferreiro próspero, tinha sido morto a tiro durante uma noite pelo Ku Klux Klan, porque possuía um cavalo e uma mula (e isso era considerado um insulto). Tal como muito outros jovens afro-americanos instruídos que viveram no tempo da segregação racial (as chamadas leis Jim Crown), Louis descrevia-se como “radical e atento” e activista num “programa de agitação fervorosa em nome do povo”.

Numa resposta a uma primeira carta de Gregory, ‘Abdu’l-Bahá convidou-o a focar-se não no conflito, mas na unidade. “Espero” – ‘Abdu’l-Bahá usava a terminologia comum na época – “que possais tornar-vos… um meio pelo qual pessoas brancas e de cor possam fechar os seus olhos para as diferenças raciais e ver a realidade da humanidade, e essa é a unidade universal que é a unicidade do reino da raça humana…”

Em Abril de 1911, Louis Gregory viajou até ao Egipto para se encontrar com ‘Abdu’l-Bahá em Ramleh, uma cidade perto de Alexandria. Durante a sua primeira conversa, ‘Abdu’l-Bahá abordou imediatamente o cerne do problema: “E o conflito entre as raças branca e de cor?” perguntou Ele.

“Esta pergunta fez-me sorrir,” escreveu Gregory, “pois imediatamente senti que o meu interlocutor, apesar de nunca ter visitado pessoalmente a América, sabia mais das condições do que eu podia alguma vez saber. Respondi que havia muita fricção entre as raças. Que aqueles que aceitaram os ensinamentos Bahá’ís tinham esperanças de um acordo amigável sobre diferenças raciais; mas outros estavam desanimados. Entre os amigos existiam almas sinceras que desejavam uma unidade mais profunda entre as raças e esperavam que Ele pudesse indicar-lhes o caminho. Ele perguntou ainda: «Isto refere-se à eliminação de ódios e antagonismos por parte de uma raça ou de ambas as raças?» Ambas as raças, foi a minha resposta, e Ele disse que isso seria feito.”

“Trabalhai pela unidade e harmonia entre as raças”, disse ‘Abdu’l-Bahá a Gregory. “Não devem existir distinções”. Um ano mais tarde, quando ‘Abdu’l-Bahá estava junto ao altar da capela Rankin, frente a 1600 estudantes, professores e convidados da Universidade de Howard, Louis Gregory estava ao seu lado.

As imagens raciais de ‘Abdu’l-Bahá

A universidade de Howard tinha sido fundada em 1867 para educar os antigos escravos; em 1912 era a principal universidade afro-americana. A enorme multidão era a primeira audiência predominantemente afro-americana a que ‘Abdu’l-Bahá Se dirigia na América. Começou por chamar a atenção da diversidade na sala. “Hoje estou feliz”, disse Ele, “pois vejo brancos e pretos sentados lado a lado”. E depois afirmou que rejeitava as opiniões prevalecentes de brancos e pretos quanto à noção essencial sobre raça – tinha-se espalhado a convicção de que a raça de uma pessoa era um aspecto central da identidade humana:
Alunos da Universidade de Howard, 1912

"Não existem brancos e pretos perante Deus. Todas as cores são uma só, e essa é a cor da sujeição a Deus. Perfume e cor não são importantes. O coração é importante. Se o coração é puro, branco ou preto ou qualquer outra cor não faz diferença”.

Cerca de vinte anos antes, em 1893, os jornalistas que cobriam a Exposição Mundial Colombiana (a Exposição Mundial de Chicago) tinham começado a tinham começado a associar o termo “preto” com mal, trevas e perigo. Uma história publicada numa conhecida revista literária americana (“Frank Leslie’s Popular Monthly”), por exemplo, descreveu um grupo de africanos numa das exposições etnográficas da seguinte forma: “Sessenta e nove estão com a sua barbaridade ameaçadora”, escreveu o jornalista, “mais pretos que uma noite de lua-nova e tão abjectos quanto os animais que vagueiam nas selvas das suas terras tenebrosas”. Em 1905, milhares de nova-iorquinos foram ver Ota Benga, um pigmeu de 37 anos, da tribo Mbuti, no Zaire, exibido numa gaiola num jardim zoológico na Bronx, juntamente com um orangotango. “Isto é um homem ou um macaco?” questionava o jornal New York Times.

Mas desde a visita de Louis Gregory em 1911, ‘Abdu’l-Bahá tinha começado a elaborar uma nova linguagem racial - um novo conjunto de imagens e metáforas raciais – que conscientemente contradiziam estas conotações e hábitos racistas. O seu foco foi o próprio Louis Gregory.

“Eu comparo-vos”, disse-lhe ‘Abdu’l-Bahá, “à pupila dos olhos. Sois preto, e ela é preta, e por isso torna-se o foco da luz”. “Quando fomos a Estugarda”, escreveu ‘Abdu’l-Bahá, “apesar de ser de cor preta, ele resplandeceu como luz brilhante na reunião com os amigos”. “Ele vai regressar à América muito em breve”, aconselhou Ele a um amigo americano, “e vós, as pessoas brancas, devem saudar e homenagear este brilhante homem de cor, de forma que todas as pessoas fiquem surpreendidas”.

Na Universidade de Howard, nessa noite na Igreja Episcopal Metodista Africana Metropolitana, e nas Suas outras palestras para audiências multirraciais em Washington, durante quatro dias, ‘Abdu’l-Bahá aprofundou e alargou esta linguagem racial para reformular as diferenças raciais como fonte de beleza.

“Ao estar aqui esta noite e ao olhar para esta plateia”, disse Ele à audiência, “lembrei-me curiosamente de um bouquet de violetas, juntas unindo várias cores, escuras e claras”.

“No reino vegetal, as cores diversificadas das flores não são motivo de discórdia. Pelo contrário, as cores são motivo beleza do jardim, pois uma cor única não seria atraente. Mas quando observamos flores de múltiplas cores, vemos encanto e exibição. O mundo da humanidade também é semelhante a um jardim, e a humanidade é semelhante às flores de múltiplas cores. "

Numa palestra no dia seguinte, ‘Abdu’l-Bahá explicou que:

“No grupo das joias das raças, que os pretos sejam como safiras e rubis e os brancos sejam como diamantes e pérolas. A beleza combinada da humanidade será testemunhada na sua unidade e harmonização.”

Para além dos Direitos Civis

Durante a Sua viagem, ‘Abdu’l-Bahá argumentou que a igualdade legal e política nunca seria capaz de ultrapassar o fosso cultural que separava brancos e afro-americanos. “Podem reunir todas as forças físicas da terra”, foram as suas palavras relatadas por um jornalista de Nova Iorque, “e tentar por todos os meios criar a união onde todos se amem uns aos outros, onde todos tenham paz – mas isso terminará em fracasso.”

Não era suficiente que grupos raciais antagonistas fossem forçados a unir-se através de meios legislativos. Eles tinham de fazer a opção pela união. E isso exigia uma base sólida de amor e unidade.
 
Louis Gregory e Louise Mathew
A Sua defesa da unidade racial, portanto, ia além dos meros argumentos económicos, políticos e morais. Ele não alinhava com qualquer das conhecidas posições dos brancos no debate racial americano, nem aceitava a dicotomia entre o apaziguamento e a agitação política que caracterizavam os líderes afro-americanos. Ao contrário de Booker T. Washington e dos reformadores do Evangelho Social, que se preocupavam com o desenvolvimento económico; ao contrário da abordagem sobre direitos políticos e orgulho racial, de W.E.B. Du Bois; e ao contrário de Marcus Garvey - que em breve promoveria a transferência dos afro-americanos talentosos para África onde fundariam um estado pan-africano ideal - ‘Abdu’l-Bahá procurava uma mudança na atitude emocional de americanos pretos e brancos em relação à questão racial e nas suas relações mútuas. 

A batalha retórica de ‘Abdu’l-Bahá com as ideologias da ordem racial americana foi apenas o início de uma campanha geral para superar a segregação racial nas mentes e nos corações dos americanos. Ele concebeu uma estratégia para a unidade racial que visa não só a promoção dos direitos económicos e civis de todos os afro-americanos, mas também a cura para séculos de desconfiança que o preconceito racial criou entre brancos e pretos. Durante a Sua viagem na América, e durante o resto da Sua vida, Ele lutou para traduzir esta nova abordagem à unidade racial para o reino da realidade.

Louis Gregory era frequentemente o seu assunto. No mesmo dia da palestra em Howard, ‘Abdu’l-Bahá quebrou o rígido protocolo de Washington ao sentar Gregory num lugar de honra num almoço diplomático para o qual ele - por ser preto - não tinha sido convidado. Alguns dias mais tarde, o Seu discurso sobre unidade racial deu os seus primeiros frutos quando Gregory foi eleito para o Conselho executivo do Templo Bahá’í da Unidade, uma organização Americana que era constituída quase totalmente por americanos brancos. E talvez ainda mais significativo, Ele juntou e encorajou o casamento de Gregory e Louise Mathew, ele preto e ela branca. Casaram em Nova Iorque em 27 de Setembro de 1912 e viveram felizes até ao falecimento de Louis, em Julho de 1951.

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Texto original em inglês: Abdu’l-Baha’s Radical Approach to Race Unity (www.bahaiteachings.org)


Jonathan Menon foi editor do site 239 Days in America e está a escrever uma biografía de Sarah J. Farmer (1847-1916).



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