sábado, 25 de julho de 2020

Tecnologia e Religião - A Alma e a Máquina

Por David Langness.


Ao correr pelo nosso mundo acelerado, consumista, urbanizado e tecnologicamente avançado, alguma vez sentiu que os seus valores, a sua humanidade ou mesmo a sua alma se estão a desvanecer?

Este assunto obscuro – perder o contacto com a nossa realidade interior – domina a arte e a literatura da era pós-moderna. Designada anomia, angústia existencial ou apatia, é considerada como sendo causada pelas nossas sociedades complexas e moralmente ambíguas, que tendem a focar-se no mundo material e ignoram o espiritual.

Por exemplo, no romance Os Irmãos Karamazov, de Fyodor Dostoyevsky, um dos personagens descreve que sem a crença em Deus e na imortalidade, tudo seria legítimo. Numa cultura sem bússola moral, qualquer acto, por muito transgressivo que seja, torna-se pensável e exequível. É essa perigosa realidade que enfrentamos hoje.

Apenas um dos fundadores das grandes religiões mundiais foi confrontado com esta situação.

Bahá’u’lláh, nascido no início da era da industrialização, apresentou à humanidade uma religião que aborda directamente os conflitos inerentes entre, por um lado, fé, ética e moralidade, e por outro lado, as sociedades industrializadas altamente tecnológicas. Com a sua ênfase na razão, na harmonia entre ciência e religião, e na investigação independente e racional da verdade, a Fé Bahá’í encoraja claramente o desenvolvimento de um mundo tecnologicamente avançado. Na verdade, em 1875, ‘Abdu’l-Bahá escreveu um livro - intitulado O Segredo da Civilização Divina – sobre este assunto, onde aborda o atraso científico, tecnológico e governativo da Pérsia daquele tempo – e aconselha entusiasticamente os líderes daquela sociedade a seguir o exemplo da Europa e a modernizarem-se:
Não contribuíram estes novos sistemas e procedimentos, estes empreendimentos progressistas para o avanço daqueles países? Foram os povos da Europa prejudicados pela adopção de tais medidas? Ou, pelo contrário, eles alcançaram com estes meios o mais elevado grau de desenvolvimento material? Não é verdade que, durante séculos, o povo da Pérsia tem vivido como o vemos a viver hoje, seguindo o modelo do passado? Resultaram quaisquer benefícios discerníveis, foi realizado algum progresso? Se estas coisas não tivessem sido comprovadas pela experiência, alguns, em cuja mente a luz da inteligência nativa está obscurecida, poderiam questioná-las em vão. Pelo contrário, porém, cada aspecto destes pré-requisitos para o progresso tem sido testado repetidas vezes noutros países, e os seus benefícios demonstrados tão claramente que até mesmo a mais tola das mentes pode entendê-los.

Consideremos isto de forma justa e sem preconceitos: perguntemo-nos qual destes princípios básicos e sólidos, procedimentos bem estabelecidos, não conseguiriam satisfazer as nossas necessidades actuais ou seriam incompatíveis com os melhores interesses políticos da Pérsia, ou seriam insultuosos para o bem-estar geral do seu povo. Seriam o alargamento da educação, o desenvolvimento de artes e ciências úteis, o desenvolvimento da indústria e da tecnologia, coisas prejudiciais? Um tal esforço encoraja o indivíduo no seio da multidão e eleva-o das profundezas da ignorância aos mais elevados cumes do conhecimento e da excelência humana. (‘Abdu’l-Bahá, The Secret of Divine Civilization, p. 13)
Mas apesar de ‘Abdu’l-Bahá ver e aprovar alguns dos benefícios da era moderna e das suas tecnologias, Ele não tinha uma visão inteiramente positiva dos seus efeitos nas nossas almas. Durante a Sua primeira visita às modernas capitais europeias em 1911, Ele afirmou:
Vejo as pessoas como abelhas ou formigas, indo e vindo aos magotes, aparecendo como ondas, ocupando-se continuamente com as suas profissões.

Mas se lhes perguntarem “O que estão a fazer? Porquê esta agitação?” perceberão que elas nada sabem sobre a sua origem e o seu fim, e nada procuram excepto comer, dormir e ser assiduamente conivente com os seus desejos sensuais. (Bahá’í World, Volume 13, p. 1187)
Quando Shakespeare escreveu o seu famoso solilóquio no último acto de Macbeth, ele tinha a mesma ideia em mente.
...e todos os nossos ontens iluminaram para os loucos
o caminho da poeira da morte. Apaga-te, apaga-te, fugaz tocha!
A vida nada mais é do que uma sombra passageira,
um pobre histrião que se pavoneia e se agita uma hora em cena
e, depois, nada mais se ouve dele.
É uma história contada por um idiota,
cheia de fúria e tumulto, nada significando.
A crítica de ‘Abdu’l-Bahá à sociedade moderna – “elas nada sabem sobre a sua origem e o seu fim” – pede-nos que abrandemos, paremos e vejamos o nosso verdadeiro objectivo neste plano transitório da nossa existência. Induz-nos a pensar nas grandes questões: quem nos fez, e porquê? Indica-nos que cada ser humano contém uma realidade muito maior e mais profunda do que a sua existência material ou profissional. Apela a todos que nos recordemos que temos uma vida física efémera e uma vida espiritual eterna e intemporal.

Tal com Shakespeare, Dostoyevsky e os fundadores das grandes religiões mundiais, ‘Abdu’l-Bahá instiga todo homem e toda a mulher a ver amplamente, a meditar sobre o significado da nossa mortalidade e a transcender esta sombra passageira.

-----------------------------
Texto original: Technology and Religion—The Soul and the Machine (www.bahaiteachings.org)


 
 - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -

David Langness é jornalista e crítico de literatura na revista Paste. É também editor e autor do site www.bahaiteachings.org. Vive em Sierra Foothills, California, EUA.

Sem comentários: