sábado, 23 de outubro de 2021

Nenhuma Religião é a Última Religião

Por Nader Saiedi.


Em praticamente todas as religiões existem crentes que cometem um erro comum: considerar a sua própria Fé como a última religião revelada por Deus.

Simultaneamente, praticamente todas as religiões esperam a vinda de um Prometido, uma figura messiânica futura – mas resolvem esta contradição dizendo que o Prometido apenas virá promover e confirmar a religião anterior, e não mudará ou abolirá as leis do profeta anterior.

Esta redução da religião a um culto do tradicionalismo – que significa que qualquer que seja a lei revelada no passado, deverá ser eternamente obrigatória – tem sido particularmente rígida entre alguns seguidores do Islão. Com base num excerto do Alcorão, que afirma que Maomé não tem um filho, mas que Ele é um mensageiro de Deus e o Selo dos profetas (Alcorão 33:40), muitos clérigos Muçulmanos concluíram que o Islão é a última religião, que as Suas leis são imutáveis por toda a eternidade, e que qualquer desvio da lei islâmica corrompe o mundo.

Bahá’u’lláh abordou este assunto em vários dos Seus trabalhos escritos, incluindo O Livro da Certeza, e a Epístola de Job: «Apesar de instalados no lugar do “primeiro”, eles ocupam o trono do “último”». (O Livro da Certeza, ¶174)

Para Bahá’u’lláh, a própria essência e natureza da religião define-a como dinâmica, dialética e progressiva. Reduzir a religião a um objecto estático representa a derradeira distorção e refutação da religião. Em vez disso, os ensinamentos de Bahá’u’lláh centram-se em torno da incessante revelação progressiva de Deus ao longo da história.

A Religião como Diálogo com a Humanidade


A Fé Bahá’í transformou radicalmente a noção de religião.

O modelo conceptual Bahá'í rejeita a concepção clerical estática e tradicionalista da religião, e também nega a visão ateísta que reduz a religião a uma instituição meramente social e histórica. A definição tradicionalista da religião vê-a apenas como uma expressão de uma vontade divina arbitrária, que é absoluta e sem qualquer relação com as condições históricas. Assim, a religião torna-se uma imposição arbitrária de algumas leis absolutas sobre os seres humanos – segundo o argumento, Deus é absoluto e portanto, a religião as Suas leis também são absolutas. Por outro lado, a sociologia ateísta reduz a religião a uma mera expressão das condições sociais. Esta atitude rejeita a ideia de revelação de Deus, e considera a religião como uma construção histórica e social, com formas distintas em diferentes sociedades e diferentes épocas.

O concepção Bahá’í é totalmente diferente. Os ensinamentos Bahá’ís vêem a religião simultaneamente como divina e histórica – um diálogo entre Deus e a humanidade. A religião não é para Deus, mas para o desenvolvimento dos seres humanos e da sociedade. Se a religião fosse para Deus, poderia ser absoluta e imutável. Mas se a religião funciona como uma dádiva divina que visa desenvolver as potencialidades e perfeições espirituais da humanidade, então tem de ser relativa, progressiva e dinâmica. À medida que os seres humanos evoluem, a sua capacidade espiritual aumenta e as necessidades, condições e requisitos do tempo alteram-se; consequentemente, as leis da religião também devem mudar.

O modelo de Revelação Progressiva, segundo os ensinamentos Bahá'ís

Se a religião se reduz a um conjunto de leis estáticas e eternas, então torna-se o maior dos obstáculo e inimigo do desenvolvimento humano e social.

Nestas formas de tradicionalismo extremo, a religião torna-se numa legitimação poderosa da opressão, da intolerância, da rigidez e da censura. Por exemplo, sendo as leis religiosas condicionadas pelo nível de desenvolvimento social, as religiões do passado não puderam abolir ou rejeitar o patriarcado. E se as leis religiosas fossem absolutas e eternas, então nenhuma religião do passado teria tolerado a escravatura ou o patriarcado. No entanto, sabemos que todas as religiões do passado aceitaram diferentes formas de escravatura e patriarcado.

O apoio à escravatura e ao patriarcado por parte de clérigos Muçulmanos no passado – e os seus textos com extensas justificações e codificações de diferentes direitos legais entre pessoas livres e escravos, e listas detalhadas com vários aspectos da superioridade dos homens sobre as mulheres – explica em parte os motivos pelos quais a maioria dos clérigos tradicionalistas Muçulmanos se tornaram inimigos da modernidade, dos direitos humanos, da liberdade religiosa, da emancipação da mulher, da democracia e da igualdade de todos os seres humanos perante a lei.

Os ensinamentos de Bahá’u’lláh reconstroem este tipo de prática opressiva e confusa, tornando a religião uma causa de unidade e progresso da humanidade. Um objectivo tão elevado requer a rejeição total do fanatismo e do tradicionalismo religiosos. A religião – reinterpretada como uma interacção progressiva e contínua e um diálogo entre Deus e a humanidade – torna-se a base de uma nova civilização global.

O Selo dos Profetas: Muhammad ou Jesus?


Antes de analisar a explicação de Bahá’u’lláh sobre o significado da expressão "selo dos profetas", mencionada no Alcorão, é necessário observar um paradoxo histórico. Embora os muçulmanos acreditem que apenas o profeta Muhammad é definido pelos livros sagrados como o selo dos profetas, a verdade é que o conceito de "selo dos profetas" e a ideia de conclusão da missão profética é um termo bíblico usado inicialmente em referência a Jesus.

Infelizmente, a maioria dos clérigos Muçulmanos não conhece a Bíblia. Muitos acreditaram falsamente que foi intencionalmente alterada e falsificada por Judeus e Cristãos, tendo sido eliminadas da Bíblia original todas as suas profecias sobre o Islão. Essa fantasia ofensiva dos clérigos levou a uma falta sistemática de conhecimento da Bíblia. Consequentemente, o facto de que o livro de Daniel define explicitamente a crucificação de Jesus como o cumprimento da profecia permanece desconhecido para eles. Se tivessem lido a Bíblia, saberiam que o título do Selo dos Profetas pertencia inicialmente a Jesus, tal como é apresentado na famosa passagem do Livro de Daniel sobre as 70 semanas.

Os comentadores bíblicos concordam que estas setenta semanas (ou 490 dias) se referem a 490 anos, pois existem referências frequentes na Bíblia de que um dia de Deus equivale a um ano entre as pessoas. O início desses 490 anos também é uma questão de consenso, enfatizado no Livro de Daniel como o ano 456-7 aC. Assim, as setenta semanas terminam com a conclusão do ministério de Jesus e a Sua crucificação. O livro de Daniel define este tempo como o tempo decretado por Deus em que a profecia estaria selada. O termo hebraico original usado para referir esta selagem da profecia (Khatim Nabi) é exactamente o termo árabe usado no Alcorão para definir Muhammad como o selo dos profetas. O livro de Daniel, no versículo 9:24, afirma:

Setenta semanas estão determinadas sobre o teu povo e sobre a tua santa cidade, para fazer cessar a transgressão, para dar fim aos pecados, para expiar a iniquidade, para trazer a justiça eterna, para selar a visão e a profecia e para ungir o Santo dos Santos.

Não há dúvida de que o profeta Muhammad conhecia a frase bíblica de que com Jesus a visão e a profecia estariam seladas. Mas então, porque o Alcorão usa o mesmo título para o profeta Muhammad? Certamente que, com este entendimento, o significado típico do selo dos profetas como sendo o último profeta de Deus não pode estar correto. Se aceitarmos a interpretação clerical muçulmana do selo dos profetas, não temos escolha a não ser concluir que depois de Jesus não poderia aparecer um novo profeta - e, portanto, Muhammad não poderia ter sido um profeta. Obviamente, tal significado está incorrecto, mas então como é que uma contradição tão significativa pode ser resolvida? Bahá’u’lláh no O Livro da Certeza esclarece esta contradição.

Todos os Profetas são o Primeiro e o Último


Agora podemos explorar brevemente o carácter revolucionário e libertador dos ensinamentos de Bahá’u’lláh, que define todos os profetas de Deus como uma realidade única e comum.

Na perspectiva Bahá'í, todos os profetas de Deus reflectem e manifestam nomes e atributos divinos neste mundo. Isto significa que a própria essência e verdade dos Profetas é a mais pura revelação e manifestação dos nomes e atributos divinos. A verdade dos profetas não está nas suas características físicas, humanas ou sociais. Eles são profetas porque reflectem atributos divinos e transmitem esses atributos à humanidade. Desta forma, a verdade dos Profetas é uma só e a mesma. Essa mesma verdade manifesta-se em diferentes momentos da história, de diferentes formas, de acordo com as necessidades variáveis da humanidade; mas essa verdade permanece a mesma. Esta teologia da revelação – que nos diz que os profetas de Deus são reflexos do divino - torna-se a chave para compreender o verdadeiro significado do selo dos profetas.

No Livro da Certeza, Bahá’u’lláh salienta que todas as escrituras sagradas, incluindo a Bíblia Hebraica, o Evangelho e o Alcorão, definiram Deus como sendo o primeiro e o último. Tal como o alfa e o ómega da Bíblia, o Alcorão define Deus como "o primeiro e o último, o manifesto e o Oculto" (57: 3). Visto que todos os profetas, devido à sua própria natureza, são os reflexos e expressões perfeitas dos atributos divinos, então todos os profetas são igualmente o primeiro e o último.

E sendo iguais, todos os profetas representam o regresso de outros. Jesus é o último profeta, assim como Muhammad é o último profeta. Da mesma forma, tal como o profeta Muhammad mencionou várias vezes, Ele é todos os profetas do passado, incluindo Adão. É interessante notar que o Alcorão frequentemente define todos os profetas do passado como Muçulmanos. Isso não significa que as suas leis eram as mesmas do Alcorão; obviamente, não eram. Pelo contrário, significa que a verdade de todas as religiões é uma e a mesma, e que todos os profetas de Deus são Muhammad, assim como eles são todos Cristo.

Consequentemente, todos os profetas de Deus são o primeiro profeta e todos eles são, simultaneamente, o último profeta. Como disse Bahá’u’lláh: Embora instituídos no lugar do "primeiro", eles ocupam o trono do "último". Ser o primeiro e o último indica tanto a unidade de todos os profetas como a natureza dinâmica e sempre evolutiva da religião e da revelação.

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Texto original: No Religion is the Last Religion (www.bahaiteachings.org)


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Nader Saiedi é professor de Estudos Bahá’ís na UCLA (Los Angeles, EUA). É autor de diversos livros, incluindo Logos and Civilization: Spirit, History and Order in the Writings of Baha’u’llah; e Gate of the Heart: Understanding the Writings of the Bab. Nasceu em Teerão (Irão) e tem um mestrado em economia pela Universidade Pahlavi (Shiraz) e doutoramento em sociologia pela Universidade de Wisconsin.

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