sábado, 29 de outubro de 2022

Os Mitos do Inferno e da Condenação Eterna

Por David Langness.


Quando tinha doze anos abandonei a igreja Luterana e rejeitei qualquer Deus que enviasse as almas para um local de tortura eterna chamado inferno. Mais tarde, curioso e um pouco fascinado, tentei libertar a minha alma dessa ideia.

Depois, questionei-me: afinal, de onde veio este conceito de inferno?

Olhando para a história de Hades, percebi rapidamente que os meus antepassados vikings viam o Hel – palavra nórdica – como um deserto gelado e não um abismo em chamas.

Um bibliotecário simpático mostrou-me que a palavra inglesa contemporânea HELL (inferno) teve origem nesta palavra HEL - da antiga língua nórdica ou do proto-alemão. Outras línguas têm uma palavra semelhante, geralmente usada para descrever um lugar para onde ninguém quer ir. Os anglo-saxónicos usavam as antigas palavras HEL e HELL para referir o mundo dos mortos.

E à medida que investigava as histórias sobre o inferno, descobri algo que me surpreendeu e talvez vos surpreenda: o conceito de inferno está mais enraizado nas antigas tradições mitológicas do que nas religiões.

Segundo a mitologia nórdica, quem morrida de doença ou de velhice ia para o HEL; por outro lado, quem morria de uma forma nobre, como os guerreiros numa batalha, conseguia a entrada no Valhalla, o grande salão dos eleitos. Assim, a expressão – “Go to Hell!” (“Vai para o Inferno!”) teve origem nos Vikings, que tinham a ideia assustadora de que a única morte honrosa era a morte em combate. Nos mitos nórdicos, um demónio feminino chamado Hel – a filha do impostor Loki – presidia a um local com o seu nome. O deus nórdico Odin nomeou-a para governar as grandes mansões de Hel num local do reino chamado Niflheim, um lugar gelado onde os mortos se alimentavam com rios de lágrimas.

Gradualmente, este conceito antigo de Hel tornou-se permanente, um verdadeiro lugar de condenação e sofrimento eternos foi incluído nas tradições das terras invadidas e conquistadas pelos Vikings, e espalhou-se amplamente. Posteriormente, com o decorrer do tempo, a mitologia pagã de Hel transferiu-se para a teologia Cristã e para o vocabulário da Europa cristianizada.

Claro que a tradição Judaico-Cristã já tinha o seu próprio inferno, originalmente chamado Geena ou Hinnom – um local histórico real que as pessoas temiam e evitavam. Aquilo que antes era uma lixeira que ardia constantemente, a Geena, pode ser hoje visitada em Israel, no sopé do monte Sião, num vale idílico perto da cidade velha de Jerusalém.

Nos tempos bíblicos, a lenda dizia que a Geena (o vale de Hinnom) supostamente abrigavam apóstatas e idólatras liderados pelos reis de Judá que tinham sacrificados os seus próprios filhos no fogo. Aquele lugar ficou conhecido em lendas e contos como o destino final dos condenados após a morte. As pessoas da época consideravam as fogueiras constantemente acesas da Geena /Hinnom muito piores do que a tradicional morada dos mortos, chamada Sheol na Bíblia hebraica, ou Hades na mitologia grega. Essa percepção pode ter surgido porque os corpos daqueles que cometeram suicídio, a quem era negado um enterro cristão pela igreja, muitas vezes eram cremados na lixeira da Geena. Com o tempo, todo o vale de Hinom/Geena ficou conhecido como uma lendária paisagem amaldiçoada do inferno, onde o fogo consumia as almas dos ímpios.

Então, em 1604, o rei da Inglaterra, sacerdotes e teólogos cristãos decidiram criar uma nova tradução da Bíblia. A versão King James, publicada pela primeira vez em 1611, tentava apresentar-se como uma Bíblia oficial; originalmente, era constituída por vários capítulos de muitas fontes diferentes em grego koiné, hebraico e aramaico. Apesar do facto do termo nunca aparecer nos textos originais do Antigo ou do Novo Testamento, os seis painéis de 47 homens que traduziram a Bíblia King James substituíram os nomes Geena, Sheol, Hinom, Hades e “a sepultura” por uma palavra anglo-saxônica agora popular: hell (inferno).

Na versão King James da Bíblia, a palavra inferno surge 54 vezes. Nos textos originais, essa palavra não existe.

Percebi, portanto, como surgiu o conceito.

Cristo usou a palavra Geena muitas vezes, descrevendo-a simbolicamente como o oposto da vida no reino de Deus, um lugar onde corpo e alma ardiam com um “fogo inextinguível” (Marcos 9:43). Claramente, Cristo referia-se à Geena – depósito de lixo e crematório de Jerusalém – de forma figurativa e não literal. Infelizmente, muitas pessoas têm entendido estas coisas literalmente.

Curiosamente, aprendi que Geena em árabe se traduz como Jahannam, e o Alcorão contém centenas de referências à Geena ou Jahannam, identificando-a como o inferno islâmico, um lugar metafórico onde os pecadores recebem a sua punição eterna. Também na tradição islâmica, o inferno gelado chamado Zamhareer apresenta uma visão de frio extremo, com tempestades de neve insuportáveis, neve sem fim e a perspectiva arrepiante de uma eternidade gelada e trémula. No Alcorão Zamhareer e Jahannam são, obviamente, símbolos, mas ainda hoje, os fundamentalistas os interpretam literalmente.

Originalmente destinado a servir como uma metáfora - que representava um lugar sombrio e terrível onde os mortos não fazem nada e não têm consciência, e entendido como uma condição puramente espiritual que indicava o torpor da alma - o clero de diferentes religiões transformou lentamente a advertência do inferno simbólico em inferno real, como forma de assustar e controlar as pessoas. As crianças, os incultos e os supersticiosos, que constituíam a grande massa da população na época em que muitas das religiões antigas floresceram, compreendiam o terror absoluto que o conceito do inferno inspirava. Os líderes religiosos então usaram o medo do inferno para inicialmente impor as leis morais das suas religiões – e depois, à medida que as suas religiões e a sua autoridade declinaram, para impor os seus próprios fins.

Depois de descobrir toda esta história sobre o inferno, procurei um sistema de crenças que tivesse uma visão mais sofisticada da vida após a morte. Na minha busca, encontrei a Fé Bahá'í e descobri que os Bahá'ís acreditam que a ideia de inferno não representa um lugar, mas sim uma condição espiritual que pode nos afligir a qualquer hora e em qualquer lugar:

Pensai no amor e no bom companheirismo como as delícias do céu; pensai na hostilidade e no ódio como os tormentos do inferno. (Selections from the Writings of ‘Abdu’l-Bahá, #200)

Os Bahá'ís acreditam que o inferno simboliza simplesmente o afastamento de Deus e da realidade humana superior. As Escrituras Bahá'ís descrevem o céu como um estado de proximidade de Deus, e o inferno como uma condição de afastamento e distanciamento da nossa própria realidade espiritual:

A realidade subjacente a esta questão é que o espírito mau, Satanás, ou o que quer que seja interpretado como mal, refere-se à natureza inferior do homem. Esta natureza inferior é simbolizada de várias maneiras. No homem existem duas expressões. Uma é a expressão da natureza; a outra, a expressão do reino espiritual. O mundo da natureza é imperfeito. Olhai-o com clareza, pondo de lado todas as superstições e imaginações… Deus nunca criou um espírito mau; todas estas ideias e terminologias são símbolos que expressam a natureza meramente humana ou terrena do homem. É uma condição essencial do solo que dele germinem espinhos, cardos e árvores infrutíferas. Comparativamente, isto é mau; é simplesmente o mais baixo estado e o mais desprezível produto da natureza. ('Abdu’l-Bahá, The Promulgation of Universal Peace, p. 294)

Então, o inferno, como a maioria de nós já percebeu, pode acontecer aqui e agora na Terra – não precisamos esperar pela morte e tormento nalgum abismo subterrâneo de fogo. Todos nós já sentimos as várias formas que este tipo de tormento pode assumir: a profunda depressão do fracasso, a dor e o sofrimento que a perda do amor pode causar, as terríveis consequências que escolhas erradas muitas vezes criam, a aflição desesperada do vício, a sensação de que o mundo não contém nada além da dor. Pior ainda, o inferno pode significar que acumulamos continuamente todo esse ódio e hostilidade contra outros – e até contra nós próprios.

Os ensinamentos Bahá'ís oferecem à humanidade uma alternativa a esse inferno interior:

Nos Livros celestiais, é feita menção da imortalidade do espírito, que é a própria razão de ser das religiões divinas. Pois as recompensas e punições são de dois tipos – uma são recompensas e punições existenciais e a outra, recompensas e punições finais. O paraíso e o inferno existenciais podem ser encontrados em todos os mundos de Deus, seja neste mundo ou nos reinos celestiais do espírito, e conseguir essas recompensas é alcançar a vida eterna…

As recompensas existenciais consistem nas virtudes e perfeições que adornam a realidade humana… Através dessas recompensas ele renasce em espírito, é criado de novo e torna-se a manifestação do versículo do Evangelho que diz que os apóstolos “não nasceram do sangue, nem da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus” – isto é, eles foram libertados das características e qualidades animais que são inerentes à natureza humana, e adquiriram atributos divinos, que são a graça derramada de Deus…

Para essas almas, não há maior tormento do que estar excluído de Deus, e não há punição pior do que qualidades egoístas, atributos malignos, vileza de carácter e ser absorvido por desejos carnais. Quando essas almas são libertadas das trevas desses vícios pela luz da fé, quando são iluminadas pelos raios do Sol da Verdade e dotadas de todas as virtudes humanas, elas consideram-na a maior recompensa e vêem-na como o verdadeiro paraíso. (‘Abdu'l-Bahá, Resposta a Algumas Perguntas, cap. 60)

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Texto original: The Myths of Hell and Eternal Damnation (www.bahaiteachings.org)

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David Langness é jornalista e crítico de literatura na revista Paste. É também editor e autor do site www.bahaiteachings.org. Vive em Sierra Foothills, California, EUA.

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