sábado, 11 de maio de 2024

Será que existe apenas um Livro Sagrado?

Por Maya Bohnhoff.


O meu amigo online Epignose (que chamarei Epi), uma Testemunha de Jeová, descobriu rapidamente que quando fazia perguntas ou afirmações sobre as minhas crenças, eu sentia-me perfeitamente confortável em recorrer à Bíblia - especialmente às palavras de Cristo - para encontrar as respostas.

Era compreensível que ele quisesse definir a natureza e o papel das Escrituras como base da crença. Depois de ver que os Livros Sagrados de “outras” religiões incluíam o que vulgarmente chamamos Regra de Ouro e falavam de Um Espírito Supremo ou Absoluto que gerou o mundo contingente, Epi disse:

Existe apenas uma Bíblia. Não há citações de outras escrituras, e Deus avisou-nos para não adicionar ou retirar nada dela.

Epi via as Escrituras das outras religiões como sendo acrescentos ilegítimos às Escrituras reais e indicou-me uma passagem no Livro do Apocalipse que ele considerava que expressava o seu ponto de vista:

Porque eu testifico, a todo aquele que ouvir as palavras da profecia deste livro que, se alguém lhes acrescentar alguma coisa, Deus fará vir sobre ele as pragas que estão escritas neste livro; E, se alguém tirar quaisquer palavras do livro desta profecia, Deus tirará a sua parte da árvore da vida, e da cidade santa, que estão escritas neste livro. (Ap 22:18-19)

Eu respondi: Se há citações de outras Escrituras, suponho que isso depende daquilo que você considera “outras”. Existem histórias sumérias no Gênesis; no Livro de Isaías, o profeta refere-se ao rei zoroastriano Ciro como “ungido de Deus” (em latim, Christos). Na verdade, em Isaías, lemos que Deus fala aos judeus, então cativos na Babilónia, através dos reis zoroastrianos. Será que isso indica que talvez Deus não considera os sumérios ou os zoroastrianos como “outros”?

Acrescentei: por três vezes no trecho que você citou, João enfatiza que está a falar sobre “a profecia deste livro” – isto é, o próprio livro do Apocalipse de São João. Assim, o seu aviso faz sentido. Sabemos que ele não estava a falar sobre “a Bíblia” porque a Bíblia tal como a conhecemos não existia naquela época.

As Escrituras que João conhecia eram as Escrituras Judaicas - o Tanakh (composto pela Torá [Lei], Nevi'im [livros de profecia] e Ketuvim [textos de sábios judeus]). O Novo Testamento não existia como livro quando João escreveu isto. Passariam 300 anos até que o Concílio de Niceia compilasse a colecção de livros que a maioria das denominações protestantes hoje chamam Bíblia. Essa lista não era igual à lista de outros Concílios, razão pela qual a maioria das Bíblias Protestantes tem 66 livros, a Bíblia Católica tem 73, a Bíblia Ortodoxa tem 81, e a Bíblia Copta tem 84.

Quem adicionou e quem retirou?

Os fariseus viam Jesus Cristo como alguém tentava “acrescentar algo às Escrituras” e rejeitavam a ideia de que ele tinha autoridade dada por Deus para fazer isso. Visto que nenhum dos Evangelhos tinha sido redigido, o livro profético de João também foi acrescentado às Escrituras tal como existiam na época.

Vêem o paradoxo?

E prossegui: sei que você concordará que os Evangelhos e as Epístolas são necessários para a compreensão do propósito de Deus para a humanidade, mas os estudiosos judeus da época apresentaram exactamente o mesmo argumento que você está a apresentar sobre acrescentar ou retirar. Consequentemente, eles rejeitaram os ensinamentos de Cristo. Você e eu concordamos plenamente que o propósito de Deus era que a mensagem de Cristo se tornasse parte do registo bíblico. Onde diferimos é na forma como alargamos esse entendimento aos milhares de anos antes e depois do ministério terreno de Cristo e aos profetas enviados a outros povos. Vejo a mensagem como sendo continuamente renovada, era após era, com novos elementos surgindo à medida que precisamos deles e somos capazes de os compreender. Este é o princípio Bahá’í da revelação progressiva e a razão pela qual os Bahá'ís acreditam num Criador e num conjunto sucessivo de mensageiros divinos, todos eles ensinando as mesmas verdades essenciais.

A própria Bíblia ilustra eloquentemente a forma como Deus se revela progressivamente de acordo com a nossa capacidade de compreensão. Como você diz, Ele enviou Noé, Abraão, Moisés e Jesus. E Jesus fala exactamente sobre este tema quando explica aos fariseus por que motivo Ele apresenta uma lei de divórcio diferente daquela que foi revelada na Torá. No Evangelho de Mateus, Cristo diz aos fariseus: “Moisés, por causa da dureza dos vossos corações, permitiu-vos repudiar as vossas mulheres; mas, no princípio, não foi assim.” (Mt 19:8)

Deus não mudou a Sua atitude em relação ao divórcio; mas nós mudamos o suficiente para que pelo menos alguns de nós pudéssemos seguir o novo mandamento. Embora você e eu concordemos que Cristo tinha autoridade dada por Deus para interpretar ou mesmo mudar a lei divina, os fariseus não o fizeram. Eles viam Jesus como um falso profeta tentando acrescentar ou retirar coisas das Sagradas Escrituras.

O ponto principal para nós dois é que Cristo TINHA essa autoridade, e as Suas palavras – que eram a Palavra de Deus – foram correctamente adicionadas ao que consideramos Escritura. Os Bahá’ís acreditam que Bahá’u’lláh também tem autoridade para revelar a Palavra de Deus. Bahá’u’lláh escreveu:

Sabe tu com certeza que o Invisível não pode, de forma alguma, encarnar a Sua Essência e revelá-la aos homens. Ele está, e sempre esteve, imensamente exaltado para lá de tudo o que possa ser narrado ou compreendido. Do Seu retiro de glória, a Sua voz está sempre a proclamar: “Em verdade, Eu sou Deus; não há outro Deus além de Mim, o Omnisciente, o Sapientíssimo. Manifestei-Me aos homens e enviei Aquele que é a Alvorada dos sinais da Minha Revelação. Através dele fiz com que toda a criação testemunhasse que não há outro Deus salvo Ele, o Incomparável, o Informado de tudo, o Sapientíssimo. Ele Que está eternamente oculto dos olhos dos homens nunca poderá ser conhecido salvo através do Seu Manifestante, e o Seu Manifestante não poderá aduzir maior prova da verdade da Sua Missão do que a prova da Sua própria Pessoa. (Gleanings from the Writings of Baha’u’llah, XX).

Como Bahá’í, acredito em Bahá’u’lláh pelas mesmas razões que acredito em Cristo – as Suas palavras, os Seus actos, o testemunho das Escrituras e a aplicação da razão e da fé.

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Texto original: Is There Only One Holy Book? (www.bahaiteachings.org)


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Maya Bohnhoff é Bahá’í e autora de sucesso do New York Times nas áreas de ficção científica, fantasia e história alternativa. É também compositora/cantora (juntamente com seu marido Jeff). É um dos membros fundadores do Book View Café, onde escreve um blog bi-mensal, e ela tem um blog semanal na www.commongroundgroup.net.

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