domingo, 27 de novembro de 2005

Problemas do Direito Português da Religião

O texto seguinte é um pequeno da parte final da intervenção do Dr. Jorge Bacelar Gouveia, no 1º Colóquio Religião no Estado Democrático, que decorreu nos dias 25 e 26 de Novembro em Lisboa, e foi promovido pela Comissão da Liberdade Religiosa.
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Questões controversas no Direito Português da Religião

O primeiro problema diz respeito às intervenções médicas que sejam proibidas pela confissão religiosa do doente em causa, havendo certas religiões que proíbem a adopção de certos tratamentos médicos, como as transfusões de sangue.

Evidentemente que aqui se enfrente uma colisão de dois deveres: o dever de respeitar a liberdade religiosa e o dever de salvar a vida do doente.

A lei da Liberdade Religiosa tem o preceito, que é o art. 11º, que esclarece a autodeterminação dos menores a partir dos 16 anos, em matéria de religião: “Os menores, a partir dos 16 anos de idade, têm o direito de realizar por si as escolhas relativas à liberdade de consciência, de religião e de culto”.

A verdade, porém, é que por aqui não vamos lá. O que interessa é verificar se há consentimento consistente por parte do doente: se houver, devendo ser actual, a sua vontade deve ser respeitada, mesmo conduzindo à morte; se não houver, deve prevalecer o direito de o salvar, mesmo que isso signifique a violação de um preceito religioso.

Pode por vezes suceder que um certo consentimento não seja relevante, e não tanto por causa da idade; aí, deve o profissional de saúde ter a sabedoria de discernir um consentimento consistente e maduro, que deve respeitar, e um consentimento inconsistente, imaturo, que não tem de respeitar, com a consequente salvação do doente.

O segundo problema é o do conceito legal de religião, sem o qual não é possível saber o que seja uma confissão religiosa, condição prévia para a aplicação de todos os direitos que são especificamente concedidos em função dessa realidade de cunho religioso.

Todos temos a noção, por mais empírica que seja, embora também haja dados científicos estatísticos, de que a recente explosão das religiões, em acelerada multiplicação, bastando pensar no caso português, nem sempre tem por detrás de si verdadeiras manifestações de religiosidade.
Efectivamente, pensando nos benefícios fiscais que são aplicados à actividade religiosa, não custa muito admitir a hipótese de que pode haver actividades económicas lucrativas camufladas de actividades religiosas, mas cujo fim é fazer comércio, não exercer uma religião.

Problema ainda mais complicado é o da fluidez do conceito da religião em razão das fronteiras que se vão esbatendo, como sucede com a distinção entre religião e movimentos espiritualistas “new age”, ou mesmo entre religião e os cultos satânicos, estes como se compreende não procurando propriamente prosseguir o bem moral, antes prestando culto às forças malignas...

São estas actividades das religiões? Não o sendo, como discernir, em cada caso, as que são das que não são? Pode o Estado recusar-lhes estatuto de religião? Uma vez reconhecidas como tal, pode o Estado retirar-lhe esse estatuto, com base na falta superveniente dos respectivos pressupostos?

Tudo respostas nada fáceis, mas em que a Comissão da Liberdade Religiosa terá um papel decisivo, para o que nada contribui o laconismo da Lei da Liberdade Religiosa, neste ponto estranhamente omissa.

O terceiro problema está directamente relacionado com as religiões que praticam sacrifícios de animais como actos de culto, hipótese em que a Lei da Liberdade Religiosa estabelece um preceito numa forma vaga, em que se afirma o seguinte no respectivo art. 26º: “O abate religioso de animais deve respeitar as disposições legais aplicáveis em matéria de protecção dos animais”

É assim evidente que este preceito, sozinho, não diz grande coisa, pelo que se impõe que seja compaginado com a legislação portuguesa em matéria de direitos dos animais, em que Portugal vai progredindo, não só normativamente falando, mas também no plano da consciência social, sendo até recentes os activos movimentos de defesa dos animais.

Pergunta-se: havendo o sacrifício dos animais como acto religioso, é essa prática considerada ilegal, ao abrigo da legislação protectora das animais?

Tudo depende do modo como forem realizados os sacrifícios dos animais, na certeza de que este é bem um caso em que este preceito da Lei da Liberdade Religiosa, ao remeter para a legislação protectora dos animais está a dar primazia às normas protectoras dos animais sobre as normas de protecção das confissões religiosas

O quarto problema indicado é de teor organizatório, mas situa-se no âmago de uma das maiores inovações que a LLR introduziu no Direito Português da Religião.

Trata-se da possibilidade que é conferida às confissões religiosas não católicas de poderem celebrar com o Estado Português acordos legislativos, que são propostos pelo Governo e são aprovados por acto legislativo da Assembleia da República.

Mas são várias as dúvidas que ficam no ar, pensando-se no facto de a disciplina contratual da Igreja Católica ser feita por esquema diverso, como é a da via concordatária, que tem a natureza de tratado internacional celebrado entre Portugal e a Santa Sé.

A primeira delas é a seguinte: como o Direito Internacional Público prevalece sobre o Direito Legal interno, não ficam as confissões religiosas não católicas prejudicadas por verem o seu regime contratualizado com o Estado através de uma via normativa com menos força hierárquica?

Outras porém, podem ser apresentadas: até que ponto os acordos celebrados entre o Estado e as confissões religiosas são válidos através de acto legislativo que pode ser unilateralmente alterado pelo Estado e sem o concurso da vontade dessas mesmas confissões religiosas?

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