quinta-feira, 3 de janeiro de 2008

A desforra de Deus

Aqui fica o artigo de Esther Mucznik, hoje no Público, onde são levantadas várias questões sobre as religiões e a laicidade na Europa. Os sombreados a amarelo são da minha responsabilidade.
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"A República precisa de crentes", afirmou, no Vaticano, Nicolas Sarkozy. Em visita ao Papa Bento XVI, o Presidente francês acaba de quebrar um tabu que, desde a lei de separação de 1905, relega a religião para a esfera privada dos indivíduos, suprimindo a sua expressão pública. No seu discurso em Roma, Sarkozy foi ainda mais longe, assumindo as raízes cristãs da França, "cimento da identidade nacional", e defendendo uma laicidade positiva que não encare as religiões "como um perigo, mas sim como um trunfo", numa França hoje religiosamente diversa. Como era de esperar, estas considerações tumultuaram a classe política francesa e alguma opinião pública, nomeadamente à esquerda. "Trata-se de uma verdadeira confusão entre o religioso e o político", afirmou François Hollande, dirigente do PS francês.

Dir-se-á que esta é mais uma daquelas polémicas à francesa que não interessam a ninguém, a não ser aos próprios. No entanto, como aqui já tive a ocasião de o dizer, devido precisamente ao radicalismo da sua experiência, a França é frequentemente um laboratório cujos sinais ultrapassam as suas fronteiras e este é um deles. Como doutrina e como prática, a laicidade radical que considera a religião como um factor de atraso e obscurantismo a banir do espaço público, e se possível da estratosfera, está de facto completamente ultrapassada, não só em França, mas onde quer que ela se manifeste. Existe apenas em cabeças dogmáticas que fizeram do laicismo e do anticlericalismo a sua própria religião. Na prática, quer os cidadãos, quer o poder político mantêm com as confissões religiosas uma relação natural e descontraída. Isto é uma realidade no mundo ocidental e também em Portugal, onde partidos políticos, comunicação social, ministros e Presidentes visitam igrejas, sinagogas, mesquitas e mantêm contactos com as lideranças religiosas quando tal é necessário.

A que se deve esta evolução, absolutamente impensável ainda há duas décadas? A uma maior religiosidade dos cidadãos e, em consequência, a um maior respeito pelas suas instituições? A resposta é, claramente, não! Paradoxalmente, e em particular no Ocidente europeu, o fenómeno religioso tem vindo a conquistar espaço na vida pública em proporção inversa à prática religiosa dos cidadãos. O lugar que hoje é dado à expressão pública das confissões religiosas é o resultado, em primeiro lugar, do apaziguamento do trauma da violência inaugural da separação Estado/Igreja; em segundo lugar, do reconhecimento de que num mundo de opressão política e corrupção moral os valores religiosos oferecem um universo moral alternativo às utopias ateístas e seculares. "Se não tiveres Deus", afirma T.S. Eliot, "terás de te prostrar perante Hitler ou Estaline." Certo ou errado, a verdade é que a religião tem sido frequentemente um fermento no combate às ditaduras políticas e militares: contra os regimes comunistas no Leste europeu, contra as próprias ditaduras militares seculares no mundo islâmico, onde as mesquitas são frequentemente, e com os excessos que se conhecem, o único centro de oposição política, ou mais recentemente na resistência dos monges birmaneses a um dos regimes mais opressivos do mundo. Digamos que no último quartel do século XX a história reabilitou a religião, com os seus lados positivos, mas também com os seus excessos brutais. "La revanche de Dieu", como lhe chamou Gilles Kepell.

O terceiro elemento da visibilidade actual do fenómeno religioso é a diversidade religiosa e particularmente a presença maciça do islão na Europa. Contrariamente ao judaísmo, habituado a viver em diáspora durante milénios, conformando-se às leis dos países, segundo a máxima talmúdica "a lei do país é a nossa lei", o islão não tem experiência histórica da separação entre a vivência cívica e a religiosa. Assim, a presença islâmica é uma presença religiosa visível e culturalmente diversa que mexe com o espaço público e representa um desafio para uma Europa habituada a ver-se como um "clube cristão". A questão que a diversidade religiosa coloca - e que é hoje absolutamente central - é como conviver harmoniosamente entre religiões diferentes e entre religiosos e ateus, respeitando e partilhando o espaço comum. É aqui que a questão da laicidade positiva, ou seja, uma visão liberal da laicidade, feita de negociação permanente e de equilíbrio das liberdades individuais e colectivas, pode dar uma resposta. Só ela permite a plena realização pessoal e cívica que para muitas pessoas passa pela prática de uma religião. Ao estimular uma prática religiosa tolerante e respeitadora das convicções alheias, a laicidade positiva é também um antídoto contra os fundamentalismos religiosos e laicos.

Algo estará a mudar na velha Europa, a que não será estranho o combate intransigente do Papa Bento XVI contra as ideologias seculares e o materialismo "que esqueceu que o homem permanece homem, que a liberdade permanece a liberdade, mesmo para fazer o mal". Algo está a mudar numa Europa em que o Presidente francês vai ao Vaticano afirmar as raízes cristãs da república mais laica do planeta e em que um ex-primeiro ministro britânico assume publicamente a sua apostasia e conversão ao catolicismo....

Em Portugal, onde a convivência inter-religiosa e cultural é hoje pacífica, ainda existem esporadicamente uns laivos de laicismo sectário e absurdo, como a recente medida do Ministério da Educação de retirar os nomes dos santos às escolas públicas. A verificar-se, esta decisão revela uma visão da laicidade completamente deturpada, ignorando a cultura cristã dominante da população portuguesa e encarando a esfera pública secular como um espaço neutro, asséptico e esquizofrénico, em que cada um tem de calar as suas convicções, remetendo-as para uma esfera quase tão tabu e "vergonhosa" como as opções sexuais...

Para não referir o absurdo de uma medida que coerentemente teria de se aplicar progressivamente a hospitais, juntas de freguesia, elevadores públicos...

Será necessário repetir que a laicidade positiva contemplada pela Lei de Liberdade Religiosa de 2001 pressupõe, ao invés, a expressão pública, livre e harmoniosa da diversidade cultural e religiosa?

11 comentários:

Pedro Fontela disse...

Para variar Esther Mucznik transmite uma visão extremamente parcial da realidade e prefere não fazer referência a nada que não se enquadre na lógica que ela própria criou. A isto chama-se mandar a laicidade ás urtigas mantendo nominalmente a referência legal a tal conceito. A grande desonestidade é que querem como sempre trazer estas medidas pela calada...

Marco Oliveira disse...

Onde que ela tem uma visão parcial?
Onde é que ela manda a laicidade às ortigas?

Pedro Fontela disse...

Marco,

Ou há separação entre estado e religião ou não existe. Não há meio termo neste assunto. A tal laicidade positiva deixa sequer de ser laicidade.

A parcialidade desta sra em particular é que tem um talento incrivel para olhar para o próprio umbigo e ver sempre as religiões na sua melhor luz - dentro das categorias de "respeito" pela "pecking order" (mais antigo= mais válido; monoteísmo melhor que outras versões; etc)...

Marco Oliveira disse...

Pedro,

O Estado mantém diálogo (e tenta ser isento e equidistante) com diversos agentes sociais. Partidos políticos, sindicatos, escolas, associações de cidadãos, ordens profissionais, clubes desportivos, IPSS’s… todos têm um relacionamento com o Estado. E o relacionamento do Estado varia consoante a especificidade de cada um destes agentes.

Então porque é que o Estado seguir essa laicidade positiva, dialogando com as religiões (ou as comunidades religiosas) e tendo em conta a sua especificidade própria enquanto agente social?

Ou deverão alguns agentes sociais ser ignorados pelo Estado só porque são religiões (ou as comunidades religiosas)?

Pedro Fontela disse...

Não meto todas as religiões no mesmo saco Marco mas dadas as especificidades das religiões dominantes no mundo - essencialmente são de um cariz essencialmente clerical o que é por si só problemático q.b. - qualquer conversa serve os interesses de uma classe e não das religiões em si e muito menos de todas as correntes existentes.

Marco Oliveira disse...

Pedro,

Podia pegar nas tuas palavras e aplicar o mesmo raciocínio sobre qualquer outro agente social. Por exemplo:

“Não meto todas as empresas no mesmo saco,... mas dadas as especificidades das empresas dominantes no mundo - essencialmente são de um cariz essencialmente financeiro o que é por si só problemático q.b. - qualquer conversa serve os interesses de uma classe e não das empresas em si e muito menos de todas as correntes existentes.”

Isto dá para aplicar a qualquer agente social.

Pedro Fontela disse...

Marco,

Pegando no teu exemplo... as empresas são essencialmente de natureza mercenária. Servem só e apenas o conceito do lucro salvo rarissimos casos de casmurrice de algum patrão e isso deve ser tomado em conta quando existem contactos com elas, a inocência no que toca à governação é um acto criminoso.

Mas também tens de reparar que o papel da empresa não é de natureza ideológico enquanto o da religião organizada sem dúvida que é.


ps: estou enganado no que disse sobre os interesses do clero e da sua falta de representatividade?

Marco Oliveira disse...

Pedro,

O ambiente que se vive em muitas empresas (onde se cria um culto de “viver para o trabalho”) pode bem ser considerado um sucedâneo ideológico. Os trabalhadores/crentes acreditam que devem alcançar o sucesso/salvação; se não conseguirem estarão condenados e sentirão que a sua carreira/vida foi em vão. Pode parecer caricato, mas isto existe.

Muito clero/patronato confunde os interesses pessoais com os interesses das pessoas que servem na sua organização. Quanto à representatividade: quantas religiões/empresas têm os seus líderes eleitos pelos crentes/trabalhadores?

Pedro Fontela disse...

Marco,

Eu não disse que a escolha de líder era democrática (ou que deveria ser) apenas disse que não é representativa e isso ninguém nega certo? E de certa forma estas a dar-me um bocado de razão no que digo... a boa fé nas relações com as empresas está à partida quebrada pela propria natureza da criatura.

Acho que estamos a entrar no campo das relações de poder entre os vários agentes e a sua relativa legitimidade... grande tema mas nem de longe nem de perto se limita à religião - que na minha opinião, como a qual discordas, toda a estrutura religiosa activamente envolvida em questões políticas é uma ameaça ao debate racional e livre e visa usurpar a legitimidade dos orgãos cívicos competentes.

Marco Oliveira disse...

Pedro,

Deixa-me corrigir:

“Toda a instituição (não política) envolvida em questões políticas é uma ameaça ao debate racional e livre e visa usurpar a legitimidade dos órgãos cívicos competentes. Veja-se o relacionamento de algumas autarquias com empresas de construção civil, consultores financeiros, clubes de futebol,…”

Mas isso não significa que o Estado ignore empresas, clubes de futebol e outras entidades. Tem que dialogar e deve funcionar como árbitro isento e imparcial. O mesmo se passa com as religiões.

É verdade que o clero (ou a esmagadora maioria deste) não é um representante eleito pelos crentes. Mas os crentes exigiram outros representantes? Então não há muitas alternativas para dialogar…

Se há indivíduos - ou instituições - que lideram uma empresa/religião/clube então é com esses que se deve dialogar. Por muito que isso custe e nos desagrade essa falta de representatividade.

Pedro Fontela disse...

Marco,

O facto dos accionistas serem donos de uma empresa e existir uma direcção que a gere não quer dizer que estes sejam os únicos “stakeholders” com os quais tem que se estabelecer dialogo – os funcionários por exemplo não se consideram representados pelo patronato com toda a razão e o estado tem que falar com eles.

E obviamente que como os objectivos destes grupos são diferentes o estado não deve partir da mesma aposição negocial quando fala com cada um deles.