sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

Dinheiro

O Público tem hoje no seu suplemento de Economia um artigo especial sobre as religiões e o dinheiro. O texto centra-se nas cinco grandes: Judaísmo, Cristianismo, Islão, Hinduísmo, e Budismo. Para os bahá'ís que se lamentam pela sua religião não ser referida neste artigo, pergunto: que contributo poderiam os bahá'ís dar numa reflexão sobre a relação da religião com a riqueza material? Apesar de já se poder encontrar alguns ensaios sobre este assunto[1], da maioria dos baha'is pouco mais se costuma ouvir do que a constante repetição de um princípio: a abolição de extremos de pobreza e riqueza [2].

Por outras palavras há que colocar limites nas diferenças de distribuição de riqueza; é inaceitável que existam milhões de pessoas vivam na mais abjecta pobreza e miséria, enquanto outros vivem rodeados de fausto que nem os reis ou os faraós do passado alguma vez puderam imaginar. Mas como atingir este objectivo? As escrituras Bahá'ís não apresentam um modelo de desenvolvimento económico; apenas contêm conselhos sobre justiça nas relações laborais, incentivos à filantropia, e alguns ensinamentos muito específicos sobre dinheiro.

Numa das Suas Epístolas, Bahá'u'lláh encorajou atitudes filantrópicas dos ricos:
Os que possuem riquezas, porém, devem ter a máxima consideração pelos pobres, pois grande é a honra destinada por Deus àqueles pobres que são constantes em paciência. Por Minha vida! Não há honra que se possa comparar com esta honra, excepto aquela que apraza a Deus conceder. Grande é a bem-aventurança que espera os pobres que suportam pacientemente e ocultam seus sofrimentos, e felizes os ricos que doam suas riquezas aos necessitados e os preferem a si próprios.

Queira Deus, possam os pobres esforçar-se e lutar para ganharem os meios de sustento. É este um dever que, nesta mais grandiosa Revelação, foi prescrito a cada um e, aos olhos de Deus, é considerado uma boa acção. A quem observar este dever, a ajuda do Invisível, com absoluta certeza, haverá de beneficiar. Ele pode enriquecer, através da Sua graça, a quem Ele queira. Ele, verdadeiramente, tem poder sobre todas as coisas... [3]
'Abdu'l-Bahá, por seu lado, mostrou-se bem conhecedor dos problemas das sociedades industriais do início do séc. XX quando abordou o tema das diferenças na distribuição de riqueza e a necessidade de justiça e bom senso nas relações laborais:
...devem ser estabelecidas leis que regulamentem as fortunas excessivas de indivíduos particulares e responda às necessidades de milhões das massas pobres; assim, uma certa moderação será conseguida. No entanto, a igualdade absoluta é impossível; a igualdade absoluta nas fortunas, honras, comércio, agricultura, indústria terminariam em desordem e caos, na desorganização dos meios de existência e na desilusão universal; a ordem da comunidade seria praticamente destruída. As dificuldades também surgiriam se se tentasse impor uma igualdade injustificada. Assim é preferível que a moderação seja estabelecida através de leis e regulamentos que impeça a constituição de fortunas excessivas de indivíduos particulares, e proteja as necessidades essenciais das massas. Por exemplo, os fabricantes e industriais acumulam tesouros todos os dias, enquanto que os pobres artesãos não ganham o seu sustento diário; isto é o cúmulo da iniquidade e nenhum homem justo o pode aceitar. Assim, devem-se estabelecer leis e regulamentos que permitam aos trabalhadores receber os seus salários e um quarto ou um quinto dos lucros, de acordo com a capacidade da fábrica; ou de qualquer outra forma, o corpo dos trabalhadores e fabricantes deve partilhar equitativamente os lucros e benefícios. Na verdade, o capital e a gestão vêm do dono da fábrica, e o trabalho e o esforço vêm do corpo dos trabalhadores. Os trabalhadores devem receber salários que lhes garanta um sustento adequado, e quando deixem de trabalhar, fiquem doentes ou desamparados tenham benefícios suficientes dos rendimentos da indústria; ou então, os salários devem ser suficientemente elevados para satisfazer os trabalhadores com o que recebem e permitir-lhes poupar um pouco para os dias de necessidade e desamparo... [4]
Sobre o uso do dinheiro, podemos encontrar um pequeno texto de Bahá'u'lláh onde o fundador da religião Bahá’í declara ser legítimo cobrar juros sobre dinheiro emprestado. Lembro que a Fé Bahá’í nasceu num meio islâmico, e que nesta religião a cobrança de juros é proibida.
Quanto à tua pergunta referente a juros e lucros provenientes do ouro e da prata: ... Muitas pessoas necessitam disso, pois, se não houvesse perspectiva de se ganhar juros, os interesses dos homens sofreriam um colapso ou um desequilíbrio. Raramente se pode encontrar uma pessoa que manifeste tal consideração para com seu semelhante, um patrício seu, ou o seu próprio irmão, e lhe mostre tão terna solicitude, que esteja disposta a conceder-lhe um empréstimo em termos benevolentes[5]. Como sinal de favor aos homens, prescrevemos que juros sobre dinheiro sejam considerados como outras transacções de negócios correntes entre os homens. Assim, agora que este mandamento claro desceu do céu da Vontade de Deus, é legítimo e apropriado cobrar juros sobre dinheiro... Em verdade, Ele ordena de acordo com a Sua Própria escolha. Ele legitimou agora, os juros sobre dinheiro, tal como no passado o tornara ilegal.[6]
Além destes três excertos das escrituras baha'is, também as regras de funcionamento dos fundos Bahá’ís nos permitem perceber a importância de uma relação saudável com o dinheiro. Por exemplo, o facto de apenas os bahá'ís poderem contribuir para os fundos da sua religião, pode ser visto como uma regra de independência da comunidade em relação ao poder financeiro do exterior. Por outro lado, a contribuição aos fundos bahá'ís é voluntária; ninguém pode cobrar ou exigir a um crente que contribua. Além disso o montante da contribuição é sigilosa; ninguém deve divulgar o valor das suas contribuições.

Este post apresenta uma breve noção da posição bahá'í face a temas como dinheiro, pobreza e riqueza. Um estudo mais detalhada e aprofundado das Escrituras Bahá'ís permitirá certamente esclarecer muitos outros aspectos sobre estes temas.[7]

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NOTAS
[1] – Dois textos merecem destaque: Religious Values and the Measurement of Poverty and Prosperity e Toward a Baha'i Economic Model
[2] – Por vezes, alguma literatura (e websites) refere este princípio com uma expressão pouco feliz: uma solução espiritual para os problemas económicos.
[3] - Selecção dos Escritos de Bahá’u’lláh, sec. C
[4] - 'Abdu'l-Bahá, Respostas a Algumas Perguntas, cap. 78
[5] – Refere-se a empréstimos sem juros nem data limite de pagamento.
[6] – Epistolas de Bahá'u'lláh.
[7] – Usando o Ocean, descobre-se que a palavra “money” aparece 705 vezes na literatura bahá'í em inglês. É um indicador de que ainda há muito a dizer sobre este tema.

2 comentários:

Dina Domingues disse...

não sou Bahai, mas concordo contigo, que raio tem a religião a ver com dinheiro?
espera, será que "capitalismo" é religião? se calhar é, e ai já compreendo

Anónimo disse...

eu não sei qual é a mistura mais explosiva: religião com politica ou religião com dinheiro.