domingo, 16 de fevereiro de 2014

Transformar cobre em ouro?

Por Sen McGlinn.

Um investigador perguntou: os Bahá’ís acreditam mesmo que o cobre se transforma em ouro após 70 anos se for protegido contra a solidificação (i.e., se ficar sempre no estado líquido)?

O talento mais importante para compreender as escrituras, incluindo as escrituras Bahá’ís, não é o domínio das línguas originais, ou um qualquer conhecimento misterioso, mas familiaridade com a linguagem literária: a capacidade para ler poesia e escrita similar. A linguagem religiosa é necessariamente metafórica, usando o mundo físico (tal como é entendido na época) como um correlativo e reflexo das realidades espirituais. A mentalidade literalista confundiu completamente a leitura de qualquer escritura. Este é um problema em todas as comunidades religiosas de hoje, pois a modernidade atribuiu um estatuto tão elevado às ciências exactas à sua forma de descrever o mundo que muitas pessoas nunca aprenderam a ler a linguagem literária como literatura.

O texto a que se referia o investigador está no "Livro da Certeza" (Kitáb-i-Íqán) de Bahá'u'lláh. Na tradução de Shoghi Effendi lê-se:
É evidente que, nada menos que esta transformação mística poderia fazer um tal espírito e conduta, tão completamente distintos dos seus hábitos e modos anteriores, manifestar-se no mundo do ser... Tal é o poder do Elixir Divino, que, tão rápido quanto um piscar de olhos, transmuta as almas dos homens!

Considera, por exemplo, a substância do cobre. Se fosse protegido na própria mina contra a solidificação, atingiria, num prazo de setenta anos, o estado do ouro. Há quem sustente, porém, que o próprio cobre é ouro, que por se ter solidificado, está numa condição defeituosa, não tendo, portanto, atingido o seu próprio estado.

… o verdadeiro elixir, num instante, fará a substância do cobre atingir o estado do ouro e atravessar as etapas de setenta anos num único instante. Poderia este ouro chamar-se cobre? Poder-se-ia afirmar que não tinha atingido o estado do ouro, quando temos na mão uma pedra de toque para analisá-lo e distingui-lo do cobre? De igual forma, através do poder do Elixir Divino, estas almas atravessam o mundo do pó e, num piscar de olhos, progridem para o reino da santidade... (Livro da Certeza [Kitáb-i-Íqán], parag. 164-167)
Vamos começar por ler isto no final; com "Poder-se-ia afirmar que não tinha atingido o estado do ouro, quando existe uma pedra de toque para analisá-lo e distingui-lo do cobre?" Bahá'u'lláh espera que os seus leitores vejam que a pedra de toque está disponível, mas esta é uma ferramenta de ensaio: não o tipo de coisa que os leitores tenham nas suas mesas. Penso que a pedra de toque é uma metáfora para o próprio Bahá'u'lláh, que realmente temos "na mão". E se a pedra de toque é metafórica, o cobre e o ouro também devem ser metafóricos.

O contexto dá-nos mais pistas. O contexto anterior é a "transformação mística" de certas "almas abençoadas", e o argumento é que isto pode acontecer gradualmente, ao longo da vida, ou, com a ajuda do elixir pode acontecer num instante. E então, ele questiona: quem pode dizer que alguém não é o verdadeiro ouro (só porque anteriormente era algo menor do que isso), quando a pedra de toque que temos na mãe diz "ele é ouro verdadeiro"?

Há mais indícios de que a transformação do cobre em ouro está a ser usada simplesmente como uma metáfora. O cobre está "na mina do seu próprio ser." O cobre não tem um ser; as pessoas têm. Setenta anos é o tempo de vida de um homem.

Numa epístola a Ali Kuli Khan, 'Abdu'l-Bahá afirma que as palavras " ... a substância do cobre… Se fosse protegido na própria mina contra a solidificação, atingiria, num prazo de setenta anos, o estado do ouro" é uma citação, apontando para os pontos de vista de um grupo de filósofos naturais. (Ele escreve, in hekaayat qawl-e hukamaa ast). Não tenho a epístola, que tanto quanto sei é inédita; apenas possuo uma citação e transliteração, mas considero a fonte tão fiável como se fosse autorizada. Além disso, é plausível que Bahá'u'lláh tivesse a intenção que estas palavras fossem reconhecidas como uma citação, uma vez que, em seguida, ele contrapõe essa visão com as ideias de um outro grupo que sustenta que "o próprio cobre é ouro, que por se ter solidificado, está numa condição defeituosa, não tendo, portanto, atingido o seu próprio estado".

Nessa citação, 'Abdu'l-Bahá refere-se ao cobre estando protegido de uma "preponderância da secura". Solidez e preponderância de secura eram sinónimos na física que prevalecia no mundo islâmico na época (que se baseava na antiga física grego). Esta física pressupõe que todas as coisas são compostas por quatro elementos: terra, fogo, água e ar, dos quais apenas o elemento seco - a terra - é um sólido. Assim, se alguma coisa é sólida, então deve, por definição, ter uma preponderância de secura. A expressão de Shoghi Effendi "solidificação" é, pois, uma boa tradução, para um público que não conhece as categorias usadas na física da época. Um tradutor deve sempre considerar os leitores, bem como o texto fonte, com o objectivo da tradução transmitir o máximo possível da fonte para um público que não pode ler o original, e possui uma origem cultural e educacional diferente.

Noutras obras de Bahá'u'lláh que referem essa física e processos de alquimia, o elemento seco/terra representa o corpo de um indivíduo e a água representa o espírito. Ser preservado durante 70 da preponderância da secura, significa escapar às atracções do materialismo, e beneficiar de uma educação espiritual, ao longo da vida. E potencialmente, passar de um carácter misto para um puro: do cobre para o ouro.

Bahá'u'lláh não acreditava na alquimia, na forma que era proposta por estudiosos islâmicos. Ele escreve no mesmo livro:
Entre as ciências especificadas, incluíam-se as abstracções metafísicas, a alquimia e a magia natural. Conhecimentos tão inúteis e desprezíveis, esse homem considerou-os como pré-requisitos…(Livro da Certeza [Kitáb-i-Íqán], parag. 203)
E no entanto, ele usa frequentemente metáforas alquímicas. Aqui está outra:
O Livro de Deus está amplamente aberto e a Sua Palavra convoca a humanidade. Pouco mais que um punhado, porém, se mostrou disposto a aderir à Sua Causa ou a tornarem-se instrumentos para sua promoção. Estes poucos têm-se dotados com o Elixir Divino que, só por si, pode transformar no mais puro ouro a escória do mundo, e foram capacitados a administrar o remédio infalível para todos os males que afligem os filhos dos homens… (Selecção dos Escritos de Bahá'u'lláh, sec. XCII)
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Texto original (em inglês): Copper to Gold?
 

1 comentário:

Bete disse...

70 anos no Torá pode representar o período de uma vida. 70 anos é o tempo de uma geração. Então mesmo s utilizarmos a chave bíblica numérica, o sentido se traduz como espiritual... Uma vida como oportunidade para evoluir... De cobre para ouro.