A referência ao início (ou origem) da criação (ou do mundo)
é comum aos textos sagrados do Judaísmo, Cristianismo e Islão. Trata-se de uma
alusão a um momento que está para lá dos registos históricos ou da compreensão
humana. Tentando entender alegoricamente, diríamos que se trata de uma
referência à “Primeira Causa”, ou a algo que, sendo a origem de tudo, está para
lá do tempo, tal como o entendemos. E se considerarmos a criação como eterna
(tal como nos dizem as Escrituras Bahá’ís), podemos dizer que se trata de um
momento de transformação primordial, em que a criação começa a assumir a forma
que tem hoje.
No texto bíblico este conceito é descrito com a palavra
“princípio”. Vejamos alguns exemplos da tradução de João Ferreira de Almeida:
No princípio criou Deus os céus e a terra… (Gn 1:1)
Como falou pela boca dos seus
santos profetas, desde o princípio
do mundo (Lc 1:70)
Porém, desde o princípio da criação, Deus os fez macho
e fêmea (Mc 10:6)
Porque haverá então grande
aflição, como nunca houve desde o princípio
do mundo até agora, nem tampouco há de haver. (Mt 24:21)
Eu sou o Alfa e o Omega, o princípio e o fim, diz o Senhor, que é,
e que era, e que há-de vir, o Todo-Poderoso. (Ap 1:8)
As traduções Capuchinhos e Figueiredo (1821) também usam a
palavra “princípio” para descrever este conceito. Note-se ainda que o próprio
Pe. António Vieira também usa a palavra “princípio” para aludir à origem do
mundo (ver Sermão de Sto. António aos Peixes).
Na tradução inglesa da Bíblia (King James Version) – cujo
estilo é modelo para as traduções das Escrituras Bahá’ís – este conceito é
descrito com a palavra “beginning”.
O dicionário Inglês-Português da Porto Editora apresenta os
seguintes significados para a palavra inglesa beginning:
(nome) começo; princípio; início;
at the beginning of no princípio de;
at the very beginning mesmo no início;
from the beginning desde o princípio;
in the beginning no princípio
from beginning to end do princípio até ao fim
No entanto, nas traduções portuguesas das Escrituras
Bahá’ís, este conceito foi traduzido com a palavra “começo”. Vejamos alguns
exemplos:
E foi esta incomparável Fonte de
sabedoria que no começo da fundação
do mundo ascendeu a escada do significado interior e, entronizada no púlpito da
expressão, através da operação da Vontade divina, proclamou duas palavras. (Epístolas
de Bahá’u’lláh, Palavras do Paraíso)
Perguntaste sobre o assunto da
Volta. Sabe tu que o fim é semelhante ao começo.
Assim como consideras o começo, de
igual modo deves considerar o fim, e ser daqueles que verdadeiramente percebem.
Não, antes, considera tu o começo
como sendo o próprio fim, e assim, inversamente, a fim de poderes adquirir uma
percepção clara. (Epístolas de Bahá’u’lláh, Súriy-i-Vafá)
As maravilhas de Sua generosidade
não podem cessar, e jamais será detido o fluxo de Sua graça misericordiosa. O
processo de Sua criação não teve começo,
nem poderá ter fim. (Selecção dos Escritos de Bahá’u’lláh, XXVI)
Poderá ele conceber para esses
Luminares Divinos, essas Luzes resplandecentes, um começo ou um fim? (Selecção dos Escritos de Bahá’u’lláh, XXVII)
Desde o começo que não tem começo,
a insígnia que proclama as palavras "Ele faz qualquer coisa que Lhe
apraza" tem sido desdobrada em todo o seu esplendor diante de Seu
Manifestante. (Selecção dos Escritos de Bahá’u’lláh, CII)
Percebe-se que, ao usar a palavra beginning, a tradução inglesa das Escrituras pretende reflectir o
mesmo conceito que existe no texto bíblico. Para o leitor de língua inglesa, minimamente
familiarizado com a Bíblia, torna-se fácil perceber que o conceito é comum ao
Cristianismo e à Fé Bahá’í.
No entanto, para o leitor de língua portuguesa,
familiarizado com a Bíblia, a utilização da palavra “começo” em vez de
“princípio” pode levá-lo a questionar se o conceito é comum ao Cristianismo e à
Fé Bahá’í. Assim, é legítimo questionarmos porque é que a tradução inglesa
reflecte um conceito bíblico e a tradução portuguesa não o faz.
Lembro que uma tradução não é uma mera substituição de
termos de uma língua por outra. Os contextos culturais das línguas de origem e
destino devem ser considerados sempre que se faz uma tradução. E tratando-se de
uma tradução de um texto religioso, é fundamental que os tradutores estejam
familiarizados com a literatura religiosa em ambas as línguas, de forma a garantir a qualidade e o rigor das traduções.
Espero, pois, que futuras edições destas traduções
portuguesas das Escrituras Bahá’ís sejam corrigidas e a palavra “princípio”
seja usada para descrever este conceito de origem da criação.
Sem comentários:
Enviar um comentário