sábado, 15 de fevereiro de 2020

Deus e o Género

Por Christopher Buck.


Quando eu era uma criança educada numa família Cristã, Deus era um homem branco (assim o imaginava) algures no céu, que afagava a sua barba branca, decidindo se respondia ou não aos meus desejos, enviados juntamente com as minhas orações. O meu conceito infantil de Deus era semelhante ao Pai Natal, mas com uma agenda moral.

Posteriormente, depois de me tornar Bahá'í, aprendi que Deus não tem género. E além disso, Deus está acima de todas as concepções humanas. Até mesmo acreditar que “Deus é uno” – o monoteísmo na sua forma perfeita – é algo limitador, pois Deus existe para lá da singularidade e além de toda a compreensão humana.

Assim, se Deus transcende o género, então porque é que frequentemente nos referimos a Deus como “Ele”? Será isso equivalente a antropomorfismo? [“atribuir à(s) divindade(s) forma e atributos semelhantes aos dos homens”, segundo o dicionário da Porto-Editora]

Na verdade, em muitas Epístolas e orações das Escrituras Bahá'ís encontramos a frase “Ele é Deus!”. Vejamos um exemplo:
Ele é Deus! Ó Deus, meu Deus! Concede-me um coração puro como uma pérola ('Abdu'l-Bahá, Bahá'í Prayers, p. 37)
Será que estes textos Bahá'ís atribuem um género a Deus? Não, não atribuem. Os textos Bahá'ís apenas referem o género do Manifestante de Deus, ou do mensageiro de Deus na sua forma humana. Jesus Cristo foi um desses Manifestantes. Jesus era um homem e, simultaneamente, um Homem de Deus, representante e reflexo entre nós do Ser Supremo. Na forma humana, é óbvio que Jesus tinha género masculino. E o mesmo aconteceu com Bahá'u'lláh. Mas Deus não tem género masculino, excepto metaforicamente, como “Pai”.

Dr. Nader Saeidi
O Dr. Nader Saeidi, Professor de Estudos Bahá'ís na UCLA (Universidade de Califórnia Los Angeles, Departamento de Línguas do Médio Oriente), explica que segundo uma epístola de 'Abdu'l-Bahá ainda não traduzida para inglês (Mā'ida-yi Āsmānī, Vol. 9, p. 140), a expressão “Ele é Deus” refere-se primeiramente a Bahá'u'lláh, pois Deus não pode ser verdadeiramente conhecido ou imaginado. Qualquer conceito humano sobre Deus tem necessariamente de reflectir o artifício da imaginação humana e, se adorado como tal, é equivalente a idolatria mental. Os Bahá'ís entendem o “Manifestante de Deus” como a teofania, ou “aparecimento” de Deus, por excelência, na forma humana.

Então os Bahá'ís pensam que Bahá'u'lláh, o profeta fundador da Fé Bahá'í, é Deus? E os outros Profetas – Cristo, Moisés, Buda, Maomé? 'Abdu'l-Bahá explica:
[Pergunta para 'Abdu'l-Bahá] O Manifestante Divino é Deus? Sim, mas não em Essência. Um Manifestante Divino é como um espelho que reflecte a luz do Sol. A luz é a mesma e, no entanto, o espelho não é o Sol. Todos os Manifestantes de Deus trazem a mesma luz; eles apenas diferem na forma, e não na realidade. A Verdade é uma. A luz é a mesma, apesar das lâmpadas poderem ser diferentes; devemos olhar para a Luz e não para a Lâmpada. ('Abdu'l-Bahá in London, pp. 66–67)
Assim a expressão “Ele é Deus!” refere-se à “Luz” de Deus que brilha na “Lâmpada” dos Mensageiros e Profetas de Deus, nesta caso Bahá'u'lláh. Os Cristãos já entendem este conceito, conforme se vê no seguinte versículo bíblico:
Quem me vê a mim vê o Pai. (João 14:9)
Por outras palavras, Bahá'u'lláh é “Deus” em natureza, mas não em essência. Os Bahá'ís acreditam que os Manifestantes e Profetas de Deus reflectem a Sua glória para a humanidade. Uma vez que não podemos ver ou imaginar Deus, a melhor coisa que podemos fazer é ver luz de Deus que irradia da lâmpada perfeita, nomeadamente de fontes de iluminação espiritual como Moisés, Zoroastro, Buda, Jesus, Maomé, o Báb e Bahá'u'lláh.

Mas voltemos ao assunto do género. Uma vez que Bahá'u'lláh foi um homem, e também um “Manifestante de Deus”, é natural que as referências que Lhe fazemos sejam com o pronome “Ele”.

“E no entanto”, afirma o prof. Saiedi, “a verdade de Bahá'u'lláh é definida por Ele como feminina.” Estupefacto, perguntei: “Como pode Bahá'u'lláh, que era homem, ser feminino?” O prof. Saiedi explicou o seu raciocínio e a sua fonte: “Encontrei uma Epístola de Bahá'u'lláh ainda não publicada que afirma que esta huriyyih [a “Virgem Celestial”] é a verdade de Bahá'u'lláh.

Um dos mais conhecidos textos sobre a “Virgem Celestial” surgiu nas Escrituras do Báb, o precursor de Bahá'u'lláh:
Ó Qurratu'l-'Ayn! Que a Virgem Celestial, a habitante do Paraíso Exaltado, Se cubra com uma roupa grosseira e coloque um véu da mais bela seda. Que deixe a Sua mansão, e apareça Ela própria sobre a terra, com a beleza de uma donzela de olhos pretos. Que Ela oiça o doce louvor do Teu santo alento no Local do Trono e nas esferas celestiais, para que, porventura, aqueles que estão inebriados e perplexos entre os habitantes da terra possam despertar com a Tua Causa, numa medida menor que um único cabelo da Sua cabeça, conforme decretado por Deus. Deus, em verdade, conhece todas as coisas…

“Ó povos da terra! Pela rectidão do Deus uno e verdadeiro, Eu sou a Virgem Celestial gerada pelo Espírito de Bahá, que permanece na Mansão talhada com massa de rubi, delicada e vibrante; e neste poderoso Paraíso nada testemunhei salvo aquilo que proclama a Lembrança de Deus louvando as virtudes deste Jovem Árabe. Em verdade, não há outro Deus salvo o vosso Senhor, o Todo-Misericordioso…

Regressa, ó Imortal Virgem Celestial, ao Santuário sagrado na Tua Mansão. Receberás a tua recompensa apenas de Mim, escrita, em verdade, pela Minha própria mão neste Livro através de uma única letra do Meu Mandamento que foi registado em torno do Fogo. (Tradução provisória de Nader Saiedi, Gate of the Heart, pag. 153–154)

No próximo artigo explicarei quem é (ou o que é) a "Virgem Celestial".

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Texto original: God and Gender (www.bahaiteachings.org)

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Christopher Buck (PhD, JD), advogado e investigador independente, é autor de vários livros, incluindo God & Apple Pie (2015), Religious Myths and Visions of America (2009), Alain Locke: Faith and Philosophy (2005), Paradise e Paradigm (1999), Symbol and Secret (1995/2004), Religious Celebrations (co-autor, 2011), e também contribuíu para diversos capítulos de livros como ‘Abdu’l-Bahá’s Journey West: The Course of Human Solidarity (2013), American Writers (2010 e 2004), The Islamic World (2008), The Blackwell Companion to the Qur’an (2006). Ver christopherbuck.com e bahai-library.com/Buck.

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