Quando eu era criança, todas as noites antes de ir dormir, os meus pais pediam-me carinhosamente que cantasse a canção “Jesus ama-me”:
Jesus ama-me! Isto eu sei,
Pois a Bíblia assim me diz.
Os pequeninos pertencem-Lhe;
Eles são fracos, mas Ele é forte.
Refrão:
Sim, Jesus ama-me!
Sim, Jesus ama-me!
Sim, Jesus ama-me!
A Bíblia assim me diz.
– Anna B. Warner, “Jesus Loves Me” (1860).
A frase “Pois a Bíblia assim me diz” teve em mim uma influência poderosa enquanto crescia. Eu levava a Bíblia a sério, assim como milhões de Cristãos devotos em todo o mundo. Levar a Bíblia a sério significava entendê-la literalmente — ou não?
E é claro que ao ser educado como Cristão, eu tinha uma crença muito forte em Satanás - e acreditava nele literalmente. Satanás estimulava a minha imaginação, incandescia e nutria os meus medos mais profundos e inflamava o que poderia descrever como uma ansiedade geral. Que mais podia eu fazer? Eu tinha de acreditar em Satanás – “Pois a Bíblia assim me diz” – porque a Bíblia está cheia de referências a Satanás:
Sejam prudentes e estejam alerta, pois o vosso inimigo, o Diabo, anda à vossa volta, como um leão a rugir, procurando a quem devorar (1 Pedro 5:8)
Então, o Rei dirá também aos que estiverem à sua esquerda: Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, preparado para o diabo e seus anjos. (Mateus 25:41)
O grande dragão foi esmagado. Ele é a antiga serpente, aquele a quem chamam Diabo e Satanás, o sedutor de toda a gente. Ele e os seus anjos foram atirados para a Terra. (Apocalipse 12:9)
Aqui, a Bíblia descreve Satanás como um “grande dragão”, uma “antiga serpente” e um “leão a rugir”. Então, imaginei que, como Satanás podia transformar-se - assumindo diferentes formas de animais que desejasse -, eu tinha de estar atento e em vigilância constante. Tal como na canção de 1963 de Elvis Presley, “(You’re the) Devil in Disguise”, [trad: “(És o) Diabo Disfarçado”] eu estava com medo de que Satanás pudesse estar à espreita em qualquer lugar e em toda a parte, pois, tal como S. Paulo advertia: “E não é de admirar, porque o próprio Satanás se transforma em anjo de luz.” (2 Coríntios 11:14)
E se estas palavras bíblicas sobre Satanás devessem ser tomadas como metafóricas e simbólicas? E se Satanás não fosse um ser real, mas um símbolo e uma metáfora?
Depois de me tornar Bahá'í, percebi que a crença Cristã em Jesus Cristo, de certa forma, também implicava a crença na existência de Satanás como parte do universo metafísico Cristão, tal como eu o entendia naquele tempo. Resumindo, comecei a duvidar do diabo depois de me tornar Bahá'í. Isto não foi fácil de fazer, mas nunca poderei voltar atrás. Porquê? Porque finalmente libertei-me da minha chamada crença “Cristã” em Satanás, à qual não estou mais preso. Para mim, Satanás é uma superstição. A minha antiga crença em Satanás agora está desfeita.
Hoje, apesar de continuar a acreditar em Jesus Cristo, como todos os Bahá'ís, já não acredito que “Satanás” exista; é apenas um símbolo da maldade humana – que é muito real. A crença em Satanás como poder, pessoa ou príncipe desvia a nossa atenção dos problemas reais. Satanás não criou o mal. Os humanos fizeram e ainda fazem o mal. (Ver o artigo Epitáfio de Satanás):
Então, vamos ver como é descrito Satanás nas profecias, e vamos ver se podemos compreender isso:
11 Vi o céu aberto, e eis um cavalo branco. O seu cavaleiro chama-se Fiel e Verdadeiro e julga e peleja com justiça.
12 Os seus olhos são uma chama de fogo; na sua cabeça, há muitos diademas; tem um nome escrito que ninguém conhece, senão ele mesmo.
13 Está vestido com um manto tinto de sangue, e o seu nome chama-se o Verbo de Deus;
14 e seguiam-no os exércitos que há no céu, montando cavalos brancos, com vestiduras de linho finíssimo, branco e puro.
15 Sai da sua boca uma espada afiada, para com ela ferir as nações; e ele mesmo as regerá com um cetro de ferro e, pessoalmente, pisa o lagar do vinho do furor da ira do Deus Todo-Poderoso.
16 Tem no seu manto e na sua coxa um nome inscrito: Rei dos Reis e Senhor dos Senhores.
17 Então, vi um anjo posto em pé no sol, e clamou com uma grande voz, falando a todas as aves que voam pelo meio do céu: Vinde, reuni-vos para a grande ceia de Deus,
18 para que comais carnes de reis, carnes de comandantes, carnes de poderosos, carnes de cavalos e seus cavaleiros, carnes de todos, quer livres, quer escravos, tanto pequenos como grandes.
19 E vi a besta e os reis da terra, com os seus exércitos, congregados para pelejarem contra aquele que estava montado no cavalo e contra o seu exército.
20 Mas a besta foi aprisionada, e com ela o falso profeta que, com os sinais feitos diante dela, seduziu aqueles que receberam a marca da besta e eram os adoradores da sua imagem. Os dois foram lançados vivos dentro do lago de fogo que arde com enxofre.
21 Os restantes foram mortos com a espada que saía da boca daquele que estava montado no cavalo. E todas as aves se fartaram das suas carnes.
(Apocalipse 19:11-21)
Sabemos que a abordagem básica para entender as profecias – o tema desta série de artigos – consiste em descartar toda e qualquer interpretação literal que seja fisicamente impossível ou moralmente repugnante.
Um “anjo” que chama “todas as aves que voam pelo meio do céu” para um grande banquete – estranhamente apelidado de “a ceia do grande Deus” – para devorar “a carne de todos os homens, livres e escravos, pequenos e grande” não é apenas sangrenta e horrível, mas também uma punição cruel e injusta – e indevidamente vingativa, indigna de Deus.
Qualquer interpretação que exija um comportamento que seja moralmente proibido pela ética cristã bem definida não pode ser aceite. Toda e qualquer interpretação literal desse género deve, portanto, ser descartada.
Outra palavra de cautela: se a profecia não faz sentido literal e/ou eticamente, então é melhor não a interpretar literalmente. Vejamos, por exemplo, este cenário de captura e liberação:
7 Quando, porém, se completarem os mil anos, Satanás será solto da sua prisão
8 e sairá a seduzir as nações que há nos quatro cantos da terra, Gogue e Magogue, a fim de reuni-las para a peleja. O número dessas é como a areia do mar.
9 Marcharam, então, pela superfície da terra e sitiaram o acampamento dos santos e a cidade querida; desceu, porém, fogo do céu e os consumiu.
10 O diabo, o sedutor deles, foi lançado para dentro do lago de fogo e enxofre, onde já se encontram não só a besta como também o falso profeta; e serão atormentados de dia e de noite, pelos séculos dos séculos. (Apocalipse 20:7-10)
Mas afinal o que se passa aqui? Primeiro, Satanás e o seu exército são “lançados vivos dentro do lago de fogo que arde com enxofre”. Depois de mil anos, “Satanás será solto da sua prisão”.
Quem fez isso? Que sentido tem isto? Como é que a justiça e a rectidão beneficiam com isso? Felizmente, “O diabo, o sedutor deles, foi lançado para dentro do lago de fogo e enxofre (…) e serão atormentados de dia e de noite, pelos séculos dos séculos”.
O Livro do Apocalipse está escrito numa linguagem oculta, repleta de metáforas e significados simbólicos. Uma linguagem oculta deve ser decifrada para ser compreendida. Portanto, não nos deixemos enganar por aqueles que dizem que devemos interpretar a Bíblia literalmente.
Os ensinamentos Bahá’ís dizem o seguinte sobre o Livro do Apocalipse:
Medita sobre a palavra de um dos Profetas, em que Ele deu a entender às almas dos homens, através de referências veladas e símbolos ocultos, as boas novas d’Aquele que virá depois d’Ele, para que saibas com certeza que as suas palavras são inescrutáveis a todos menos àqueles que estão dotados de um coração que compreende. Ele afirmou: “Os seus olhos eram como uma chama de fogo”, e “os seus pés como bronze polido”, e também “da boca saia-lhe uma afiada espada de dois gumes”. [Ap 1:14–16; 2:18; 19:15.] Como podem essas palavras ser interpretadas literalmente? Fosse alguém aparecer com todos estes sinais, ele certamente não seria humano. E como iria alguma alma querer a sua companhia? Não, se ele aparecesse numa cidade, até mesmo os habitantes da cidade vizinha fugiriam dele, nem alma alguma ousaria aproximar-se dele! No entanto, se reflectisses sobre estas afirmações, reconhecê-las-ias como tendo uma eloquência e clareza incomparáveis que assinalam as mais elevadas expressões e o epítome da sabedoria. Creio que delas surgiram os sóis da eloquência e as estrelas de luz brilharam resplandecentes. (Baha’u’llah, Gems of Divine Mysteries, pp. 52–53)
Portanto, aqui fica uma regra prática quando quem quiser entender a profecia: cuidado com as falsas profecias – ou melhor, as falsas interpretações das profecias - se as suas interpretações literais contradizem a ciência, a razão, a ética, a decência humana e a justiça.
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Texto original: Satan in Prophecy: Symbol or Superstition? (www.bahaiteachings.org)
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Christopher Buck (PhD, JD), advogado e investigador independente, é autor de vários livros, incluindo God & Apple Pie (2015), Religious Myths and Visions of America (2009), Alain Locke: Faith and Philosophy (2005), Paradise and Paradigm (1999), Symbol and Secret (1995/2004), Religious Celebrations (co-autor, 2011), e também contribuíu para diversos capítulos de livros como ‘Abdu’l-Bahá’s Journey West: The Course of Human Solidarity (2013), American Writers (2010 e 2004), The Islamic World (2008), The Blackwell Companion to the Qur’an (2006). Ver christopherbuck.com e bahai-library.com/Buck.
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