Os ensinamentos Bahá'ís enfatizam fortemente a relação espiritual inextricável entre o conhecimento e a ação.
Este princípio estabelece uma distinção clara entre a visão Bahá’í sobre os propósitos legítimos da realidade física e as visões de Boécio e também do conceito protestante de salvação pela graça.
O debate interminável entre teólogos cristãos sobre se alguém é “salvo” pela fé ou pelas obras é tão crítico para qualquer discussão sobre o propósito da realidade física — mesmo no discurso cristão contemporâneo — que seria útil aqui rever brevemente as suas origens e o seu significado.
Certamente que os primeiros cristãos estavam divididos sobre esta questão. Paulo e Tiago parecem discutir sobre o que tem a primazia, a fé ou as obras. Paulo declarou que a fé é o único requisito para a salvação, enquanto Tiago afirmou que todos devem ser “praticantes da palavra, e não somente ouvintes” (Tiago 1:22), e que as obras completam a fé.
Em termos mais axiomáticos, numa perspectiva Bahá’í, a fé, juntamente com a virtude de todo o tipo, é inteiramente teórica até se expressar em acção.
Esta divisão inicial no Cristianismo sobre a questão da salvação pela graça, especialmente no que diz respeito à questão de saber se Cristo era ou não Deus, estabeleceu para sempre a percepção de muitos Cristãos de que o martírio de Cristo foi o acontecimento singular e significativo na vida de Cristo ou na história religiosa como um todo. Nesta perspectiva, a religião Cristã é necessariamente um acontecimento único na expressão do amor de Deus pela humanidade e o único caminho através do qual a graça de Deus pode ser alcançada — o único caminho para a salvação.
Uma referência igualmente comum é feita pela Enciclopédia Britânica que alude a esta divisão ideológica inicial entre os discípulos de Cristo e entre os primeiros seguidores do Cristianismo, mencionando também, a este propósito, que o apóstolo Paulo enfatizou uma ruptura completa com a ênfase judaica na lei, e considerava a crucificação como “o supremo acto redentor e também como o meio de expiação pelo pecado do homem”. (Chadwick, “Christianity before the Schism of 1054”, p. 535)
No entanto, o discípulo Tiago, irmão de Jesus, via o ministério de Cristo como um cumprimento da religião judaica, não como uma rejeição da mesma:
Paulo associou esta doutrina [da salvação pela graça de Deus] ao seu tema de que o Evangelho representa a libertação da Lei Mosaica. A última tese criou dificuldades em Jerusalém, onde a igreja era dirigida por de Tiago, irmão de Jesus... a carta canónica atribuída a Tiago opõe-se às interpretações antinomianas (anti-lei) da doutrina da justificação pela fé. Uma posição intermédia parece ter sido ocupada por Pedro. – Ibidem.
O próprio Cristo declarou: “Não pensem que vim anular a Lei de Moisés ou o ensino dos profetas. Não vim para anular, mas para dar cumprimento.” E continua aconselhando os seus seguidores que as suas próprias acções são essenciais para a sua salvação: “Digo-vos mais: vocês não entrarão de maneira nenhuma no reino dos céus, se não cumprirem a vontade de Deus com mais fidelidade do que os doutores da lei e os fariseus.” (Mt 5:17, 20)
Seguidamente, Ele começa a revelar um código de leis bastante rigoroso, no qual revoga algumas das leis judaicas, confirma outras e acrescenta mais algumas ao longo dos restantes vinte e sete versículos do capítulo 5 de Mateus e dos sessenta e dois versículos dos capítulos 6 e 7.
Por fim, conclui esta exegese sobre a lei e o comportamento moral com a conhecida advertência:
Aquele que ouve as minhas palavras e não as põe em prática pode comparar-se ao homem insensato que construiu a sua casa sobre a areia. Caiu muita chuva, vieram as cheias e os ventos sopraram com força contra aquela casa. Ela caiu e ficou arruinada. (Mt 7:26-27)
As numerosas afirmações de Paulo, desvalorizando e até denunciando as “obras” e a “obediência à lei” como tendo qualquer relevância para a salvação, parecem estranhamente em desacordo com os conselhos do próprio Cristo. Paulo declarou:
Nós somos judeus por nascimento e não somos pecadores como os não-judeus. Sabemos, porém, que uma pessoa não é justificada pelo cumprimento da lei, mas por meio da fé em Jesus Cristo. Ora nós cremos em Jesus Cristo para sermos justificados pela fé e não por termos feito o que a lei manda. Pois ninguém será justificado perante Deus por cumprir a lei. (Gal. 2:15–16)
No livro “The Light Shineth in Darkness” (A Luz Brilha nas Trevas), Udo Schaefer chega ao ponto de afirmar que a polémica de Paulo contra a lei era da própria teologia de Paulo, não da de Cristo. Afirma mesmo que grande parte do Cristianismo futuro derivaria o seu sistema de crenças dos ensinamentos de Paulo, e não dos ensinamentos de Cristo. Ver págs 95-97.
A forma como Paulo interpretou os ensinamentos de Cristo determinou em grande parte o curso futuro do pensamento cristão; por esse motivo, grande parte do cristianismo contemporâneo aceita a doutrina de que Cristo e Deus são a mesma entidade, e que o martírio de Cristo foi pagamento suficiente pela salvação da humanidade. Por exemplo, um tratado cristão afirma esta crença sucintamente da seguinte forma:
Nada podeis fazer para ganhar a vida eterna. Não são as nossas obras que nos salvam, mas a fé no Senhor Jesus Cristo. Não recebereis a vida eterna trabalhando por ela ou tentando agir correctamente. Aceitai o pagamento que Ele fez pelos vossos pecados e podereis descansar, e ter a certeza de que tereis a vida eterna.
Para os Bahá’ís, reconhecer os mensageiros de Deus e apreciar a natureza absolutamente essencial dos Seus sacrifícios em prol da nossa salvação e iluminação é extremamente significativo, mas não é suficiente por si só para nos permitir a transformação espiritual. De mãos dadas com o reconhecimento dos Profetas e com o reconhecimento da Sua condição elevada e vida exemplar, deve andar a obediência às leis e mandamentos que Eles revelam para nossa orientação.
Para os Bahá’ís, esta relação entre a crença e a acção é indissociável. Na perspectiva Bahá’í, a realidade física e a nossa participação nela não são meramente reflexos de crença ou ornamentos de fé. Bahá’u’lláh afirmou sucintamente que a crença e a acção são constituintes inseparáveis de um processo integral: “Estes deveres gémeos são inseparáveis. Nenhum é aceitável sem o outro.” (The Most Holy Book, p. 19)
Assim, as Escrituras Bahá’ís concordam com o espírito da observação de Boécio de que a justiça universal está a ser construída ao longo de um período de tempo. O ponto de vista Bahá’í também concorda com a ideia de que, enquanto indivíduos, podemos ter de esperar pela vida após a morte antes de vermos a justiça ser feita. Mas a perspectiva Bahá'í sobre os propósitos justos e a atitude adequada em relação à realidade física difere radicalmente das visões dos Cristãos estoicos que encontraram na obra de Boécio apoio para rejeitar a vita activa. Em vez disso, os ensinamentos Bahá’ís exortam-nos a todos a “Que as acções, e não as palavras, sejam o vosso adorno”. (Baha’u’llah, The Hidden Words, p. 24)
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Texto original: The Spiritual Relationship of Knowledge, Belief and Action (www.bahaiteachings.org)
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John S. Hatcher é formado em Literatura Inglesa pela Universidade de Vanderbilt e Doutorado em Literatura Inglesa pela Universidade da Georgia (EUA). É professor Emérito na Universidade de South Florida (Tampa, EUA). É também conhecido como poeta, palestrante e autor de numerosos livros sobre literatura, filosofia e teologia e escrituras Baha’is. Entre as suas obras contam-se Close Connections; From the Auroral Darkness: The Life and Poetry of Robert E. Hayden; A Sense of History: The Poetry of John Hatcher; The Ocean of His Words: A Reader's Guide to the Art of Baha'u'llah; and The Purpose of Physical Reality; The Kingdom of Names.
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