Sou uma terapeuta reformada com 87 anos de idade. Tenho cancro terminal e estou num lar de idosos, mas o meu apetite é enorme e estou o mais activa que posso. Que melhor altura, imagino, para um pouco de diversão na vida?
Todos os dias, faço caminhadas lentas pelo lar com a ajuda do meu andarilho. Durante estas deambulações, anunciei a todos, em termos inequívocos, que sou a Inspetora-Geral – e é melhor que se portem bem!
O que posso dizer? Sou uma vigilante da igualdade de oportunidades. A minha principal missão é provocar as pessoas de forma gentil e bem-humorada, e essas pessoas deixam-me fazer todos os meus disparates. Estou a fazer amizade com os outros residentes do lar, embora seja difícil comunicar com a maioria deles devido à demência ou doença física.
Fiquei bastante interessada em saber onde estão na sua fase da vida e o quanto vivem no passado, e tento comunicar com eles de acordo com a fase em que se encontram. Na minha vida profissional como terapeuta, nunca tinha lidado com pessoas afectadas pela demência, e agora tenho a oportunidade de aprender sobre isso, estando com elas. É triste ver o quanto mudaram ou regrediram, mas também é delicioso ouvir as suas histórias, e, por assim dizer, as suas ilusões. São pessoas muito simpáticas e é óbvio que muitos têm diplomas universitários, e alguns deles foram professores, escritores e assim por diante. Estou a tentar desenvolver amizades com todos, mesmo com aqueles que não respondem devido à demência, dizendo olá e fazendo contacto com eles, mesmo fisicamente, tocando e acariciando suavemente as suas mãos.
Há alguns dias, fez-se luz na minha mente. Era no final da tarde e eu estava a fazer o meu passeio habitual, a conversar e a brincar com a equipa, e a provocar toda a gente, como é meu hábito normal. De repente, percebi que adoro este lugar – adoro a equipa e adoro os residentes do lar.
Percebi que sou eu quem mais beneficia destas ações – como salientam os ensinamentos Bahá’ís, exemplificados por estas palavras de uma palestra que 'Abdu'l-Bahá proferiu no Maine em 1912:
Estou a vivenciar pessoalmente que posso ser muitíssimo feliz, independentemente das minhas circunstâncias. Aprendi a amar estas pessoas e sei que algumas das que cuidam de mim realmente me amam – ou pelo menos oferecem-me acções amorosas. Assim, sinto as bênçãos de Deus e, neste momento da minha vida, não quero estar em mais lado nenhum a não ser aqui – salvo o reino espiritual, mas isso será Deus a decidir o momento e o local. Um dos motivos da minha felicidade é esta maravilhosa oportunidade de transmitir e ensinar aos outros o amor de Deus. Deixa-me tão feliz que é quase inebriante.
Mas, por favor, não me ponham uma auréola à volta da cabeça! Confesso que, por vezes, sinto falta das alegrias da minha existência anterior, mas tudo isso parece muito insignificante agora, em comparação com as bênçãos espirituais que o Senhor derrama sobre mim continuamente.
Quero aproveitar estas bênçãos, por isso estou a trabalhar arduamente para estar presente no presente, sem ansiedade antecipada sobre possíveis experiências futuras da dor oncológica. Mas, por vezes e por um momento, entrego-me às minhas fantasias ociosas e imaginações vãs – por isso tenho de me lembrar que não sou Deus. Não sei absolutamente nada sobre o que vai acontecer daqui a alguns instantes, ou depois disso, por isso trabalho para estar presente aqui e agora, e para expressar amor àqueles que me rodeiam. O que mais temos?
Na semana passada tivemos uma celebração aqui no lar de idosos, e a equipa fez o melhor que pôde para proporcionar entretenimento a todos nós – trabalharam realmente muito nisso. A celebração durou vários dias, e o último dia terminou com a fotografia individual de cada residente. Foi servido gelado, e os residentes esperaram ansiosamente pelo seu gelado. Observei algo interessante: o mundo dos habitantes locais tornou-se tão pequeno que houve uma concentração colectiva em obter aquele gelado. Eu também me tornei parte dessa concentração colectiva. Não é interessante e surpreendente que alguém se possa contentar com uma bênção ou recompensa tão pequena? A questão é que o nosso foco pode diminuir tanto que uma bola de gelado se torna o centro da nossa existência.
Quando me apercebi disso, alguns sentimentos conflituosos tomaram conta de mim. Por um lado, sentia-me muito pequena e sem importância, uma daquelas “pessoas” que não deveria ter julgado quando entrei para um lar de idosos – e por outro lado, talvez sentisse que esta é a fase natural da contínua desintegração do ego, da minha importância ilusória enquanto profissional que se tornou agora um ser humano idoso.
Durante alguns dias depois de tudo isto, tive sentimentos de depressão e tristeza, bem como muita ansiedade. Cheguei ao ponto de não querer comer, não fazer a minha caminhada diária habitual e ficar na cama. Senti tristeza e pesar, bem como resignação perante o fenómeno natural do envelhecimento e da morte iminente.
Mas agora, recuperei daquela depressão. Estou a reaprender, ou a ser confirmada no meu conhecimento, de que não posso ter a certeza sobre nada, seja positivo ou negativo, e isso inclui a estabilidade do meu humor. A única coisa de que tenho a certeza é que Deus me ama e me acompanhará, sempre. Uma das coisas que me sustenta na minha luta é esta oração reconfortante atribuída a ‘Abdu’l-Bahá:
Quando recito esta oração, sinto muita afinidade com os outros residentes aqui, tanto na secção de Cuidados Especiais - que significa que precisam de cuidados parciais, como eu - como na secção de Acompanhamento a Tempo Inteiro, onde estão as pessoas acamadas. Todos eles estão a tornar-se o meu povo. Conheço os seus rostos, e essa afinidade estende-se aos funcionários e à administração, que tanto aprecio. Aqueles que dedicam a sua vida a cuidar dos outros são anjos na terra.
Consigo ver a tristeza nos rostos e no tom da equipa quando um residente morre. Uma das funcionárias disse-me que quando um residente morre, sente que parte dela também morre. Muitos destes doentes estão aqui há muito tempo, e tanto a equipa como os doentes desenvolveram algum tipo de ligação — e essa ligação é quebrada com a morte dos residentes. Então, pergunto-me: quando isso acontecer na minha viagem, será que também se sentirão tristes?
Espero que se lembrem da Inspetora-Geral com boas memórias e saibam o quanto os adoro. Espero o mesmo de todos vós.
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Texto original: As Death Approaches, Why Not Have Some Fun? (www.bahaiteachings.org)
Mahin Pouryaghma, tem quase 87 anos, e é iraniana. Desde 1964 que vive na América do Norte e actualmente vive em Marshallville, Geórgia. Mahin comprometeu-se com a Fé Bahá’í desde os seus 30 anos, com o objectivo de servir Deus servindo a humanidade.
Todos os dias, faço caminhadas lentas pelo lar com a ajuda do meu andarilho. Durante estas deambulações, anunciei a todos, em termos inequívocos, que sou a Inspetora-Geral – e é melhor que se portem bem!
O que posso dizer? Sou uma vigilante da igualdade de oportunidades. A minha principal missão é provocar as pessoas de forma gentil e bem-humorada, e essas pessoas deixam-me fazer todos os meus disparates. Estou a fazer amizade com os outros residentes do lar, embora seja difícil comunicar com a maioria deles devido à demência ou doença física.
Fiquei bastante interessada em saber onde estão na sua fase da vida e o quanto vivem no passado, e tento comunicar com eles de acordo com a fase em que se encontram. Na minha vida profissional como terapeuta, nunca tinha lidado com pessoas afectadas pela demência, e agora tenho a oportunidade de aprender sobre isso, estando com elas. É triste ver o quanto mudaram ou regrediram, mas também é delicioso ouvir as suas histórias, e, por assim dizer, as suas ilusões. São pessoas muito simpáticas e é óbvio que muitos têm diplomas universitários, e alguns deles foram professores, escritores e assim por diante. Estou a tentar desenvolver amizades com todos, mesmo com aqueles que não respondem devido à demência, dizendo olá e fazendo contacto com eles, mesmo fisicamente, tocando e acariciando suavemente as suas mãos.
Há alguns dias, fez-se luz na minha mente. Era no final da tarde e eu estava a fazer o meu passeio habitual, a conversar e a brincar com a equipa, e a provocar toda a gente, como é meu hábito normal. De repente, percebi que adoro este lugar – adoro a equipa e adoro os residentes do lar.
Percebi que sou eu quem mais beneficia destas ações – como salientam os ensinamentos Bahá’ís, exemplificados por estas palavras de uma palestra que 'Abdu'l-Bahá proferiu no Maine em 1912:
Bahá’u’lláh proclamou a promessa da unidade da humanidade. Por isso, devemos ter o maior amor uns pelos outros. Devemos ser afectuosos com todas as pessoas do mundo. Devemos … conhecer e reconhecer todos como servos do Deus único. ... o doente não deve ser odiado por estar doente, a criança não deve ser evitada por ser criança, o ignorante não deve ser desprezado por lhe faltar conhecimento. Todos eles devem ser tratados, educados, instruídos e assistidos com amor. Tudo deve ser feito para que a humanidade possa viver à sombra de Deus na maior segurança, desfrutando do mais alto grau de felicidade.
Estou a vivenciar pessoalmente que posso ser muitíssimo feliz, independentemente das minhas circunstâncias. Aprendi a amar estas pessoas e sei que algumas das que cuidam de mim realmente me amam – ou pelo menos oferecem-me acções amorosas. Assim, sinto as bênçãos de Deus e, neste momento da minha vida, não quero estar em mais lado nenhum a não ser aqui – salvo o reino espiritual, mas isso será Deus a decidir o momento e o local. Um dos motivos da minha felicidade é esta maravilhosa oportunidade de transmitir e ensinar aos outros o amor de Deus. Deixa-me tão feliz que é quase inebriante.
Mas, por favor, não me ponham uma auréola à volta da cabeça! Confesso que, por vezes, sinto falta das alegrias da minha existência anterior, mas tudo isso parece muito insignificante agora, em comparação com as bênçãos espirituais que o Senhor derrama sobre mim continuamente.
Quero aproveitar estas bênçãos, por isso estou a trabalhar arduamente para estar presente no presente, sem ansiedade antecipada sobre possíveis experiências futuras da dor oncológica. Mas, por vezes e por um momento, entrego-me às minhas fantasias ociosas e imaginações vãs – por isso tenho de me lembrar que não sou Deus. Não sei absolutamente nada sobre o que vai acontecer daqui a alguns instantes, ou depois disso, por isso trabalho para estar presente aqui e agora, e para expressar amor àqueles que me rodeiam. O que mais temos?
Na semana passada tivemos uma celebração aqui no lar de idosos, e a equipa fez o melhor que pôde para proporcionar entretenimento a todos nós – trabalharam realmente muito nisso. A celebração durou vários dias, e o último dia terminou com a fotografia individual de cada residente. Foi servido gelado, e os residentes esperaram ansiosamente pelo seu gelado. Observei algo interessante: o mundo dos habitantes locais tornou-se tão pequeno que houve uma concentração colectiva em obter aquele gelado. Eu também me tornei parte dessa concentração colectiva. Não é interessante e surpreendente que alguém se possa contentar com uma bênção ou recompensa tão pequena? A questão é que o nosso foco pode diminuir tanto que uma bola de gelado se torna o centro da nossa existência.
Quando me apercebi disso, alguns sentimentos conflituosos tomaram conta de mim. Por um lado, sentia-me muito pequena e sem importância, uma daquelas “pessoas” que não deveria ter julgado quando entrei para um lar de idosos – e por outro lado, talvez sentisse que esta é a fase natural da contínua desintegração do ego, da minha importância ilusória enquanto profissional que se tornou agora um ser humano idoso.
Durante alguns dias depois de tudo isto, tive sentimentos de depressão e tristeza, bem como muita ansiedade. Cheguei ao ponto de não querer comer, não fazer a minha caminhada diária habitual e ficar na cama. Senti tristeza e pesar, bem como resignação perante o fenómeno natural do envelhecimento e da morte iminente.
Mas agora, recuperei daquela depressão. Estou a reaprender, ou a ser confirmada no meu conhecimento, de que não posso ter a certeza sobre nada, seja positivo ou negativo, e isso inclui a estabilidade do meu humor. A única coisa de que tenho a certeza é que Deus me ama e me acompanhará, sempre. Uma das coisas que me sustenta na minha luta é esta oração reconfortante atribuída a ‘Abdu’l-Bahá:
Ó Deus, refresca e alegra o meu espírito. Purifica o meu coração. Ilumina os meus poderes. Em Tuas mãos confio todos os meus interesses. És o meu Guia e o meu Refúgio. Não mais se apossarão de mim a tristeza e a ansiedade, mas sim, o contentamento e a alegria. Ó Deus, jamais me entregarei à aflição, nem permitirei que os desgostos me atormentem ou as coisas desagradáveis da vida me inquietem. Ó Deus, és mais meu amigo do que eu o sou de mim mesmo. Dedico-me a Ti, ó Senhor
Quando recito esta oração, sinto muita afinidade com os outros residentes aqui, tanto na secção de Cuidados Especiais - que significa que precisam de cuidados parciais, como eu - como na secção de Acompanhamento a Tempo Inteiro, onde estão as pessoas acamadas. Todos eles estão a tornar-se o meu povo. Conheço os seus rostos, e essa afinidade estende-se aos funcionários e à administração, que tanto aprecio. Aqueles que dedicam a sua vida a cuidar dos outros são anjos na terra.
Consigo ver a tristeza nos rostos e no tom da equipa quando um residente morre. Uma das funcionárias disse-me que quando um residente morre, sente que parte dela também morre. Muitos destes doentes estão aqui há muito tempo, e tanto a equipa como os doentes desenvolveram algum tipo de ligação — e essa ligação é quebrada com a morte dos residentes. Então, pergunto-me: quando isso acontecer na minha viagem, será que também se sentirão tristes?
Espero que se lembrem da Inspetora-Geral com boas memórias e saibam o quanto os adoro. Espero o mesmo de todos vós.
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Texto original: As Death Approaches, Why Not Have Some Fun? (www.bahaiteachings.org)
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Mahin Pouryaghma, tem quase 87 anos, e é iraniana. Desde 1964 que vive na América do Norte e actualmente vive em Marshallville, Geórgia. Mahin comprometeu-se com a Fé Bahá’í desde os seus 30 anos, com o objectivo de servir Deus servindo a humanidade.
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