Apesar do conceito de Direitos Humanos Universais ter cada vez maior implementação, do ponto de vista prático, não existe uma justificação universalmente aceite para esses direitos. Essa ausência de justificação, e o facto da Declaração ter sido formulada num contexto em que as Nações Unidas tinham uma forte influência Ocidental, tem servido de pretexto para alguns governos ditatoriais rejeitarem algumas das suas clausulas. Segundo os lideres desses governos, a justificação desta rejeição baseia-se na sua convicção de que não existem valores morais e éticos que sejam universais; para eles, os valores morais e éticos apenas são aplicáveis dentro dos limites de certas fronteiras culturais.
Esta posição de relativismo moral foi já condenada em diversas ocasiões e por diversas instituições e personalidades. A Conferência Internacional de Direitos Humanos em Viena (1993) publicou uma declaração aprovada por 171 países onde se afirma: “Os Direitos Humanos e as liberdades fundamentais são um direito de nascença de todos os seres humanos; a sua protecção e promoção é responsabilidade primária dos Governos... independentemente dos seus sistemas políticos, económicos e culturais... A universalidade destes direitos e liberdades não é questionável...”
Pode a diversidade da família humana ser um obstáculo
à aplicação global da Declaração Universal dos Direitos Humanos?
à aplicação global da Declaração Universal dos Direitos Humanos?
Apesar deste reconhecimento, o relativismo ainda é usado como arma política. Por exemplo, na Declaração de Bangkok (1993) vários governos asiáticos declararam que a aplicação dos direitos humanos deve ter em conta “... o significado das particularidades nacionais e regionais e as diferentes origens históricas, culturais e religiosas”. Este aparente apelo ao pluralismo de valores, na prática apenas pretende legitimar moralmente a actuação governos ditatoriais na manutenção de um status quo de repressão e tirania sobre os seus povos.
Mas dificilmente se consegue justificar que a Declaração se baseia apenas num sistema de valores Ocidentais. Aung San Suu Kyi, prisioneira de consciência birmanesa e Prémio Nobel da Paz em 1991, afirmou que o conceito Budista de autoridade possui várias obrigações muito claras: “Os Dez Deveres dos Reis são: liberdade, moralidade, auto-sacrifício, integridade, gentileza, austeridade, tranquilidade, não-violência, paciência e não-oposição à vontade do povo”.[1]
Wole Soyinka, escritor nigeriano e Prémio Nobel da Literatura em 1986, rejeitou a ideia de que os Direitos Humanos sejam ideias ocidentais, impossíveis de aplicar noutros países: “Qualquer sugestão de que a liberdade de expressão é um luxo do Ocidente, é um insulto às lutas históricas dos indivíduos e das comunidades... Todos concordamos sobre o que é a tortura. Sabemos o que é a violação. Sabemos o que é prostituição infantil. Sabemos as consequências do genocídio. Então não devemos fingir que não sabemos aquilo que os Direitos Humanos verdadeiramente representam. ” [2]
Também Shirin Ebadi, iraniana, prémio Nobel da Paz em 2003, afirmou a propósito dos Direitos Humanos: “Nenhuma cultura tolera a exploração de seres humanos. Nenhuma religião permite que se mate o inocente. Nenhuma civilização aceita a violência ou o terror. A brutalidade e a crueldade são horríveis em todas as tradições. Em suma, estes princípios comuns, que são partilhados por todas as civilizações, reflectem os nosso direitos humanos fundamentais. Esses direitos são muito apreciados e acarinhados por toda a gente, em toda a parte. Assim, a relatividade cultural nunca devia ser usada como pretexto para violar os direitos humanos, uma vez que estes direitos incorporam os valores mais fundamentais das civilizações humanas. É preciso que a Declaração Universal dos Direitos Humanos seja universal, aplicável tanto a Leste como a Oeste. É compatível com toda a fé e religião. Fracassar no respeito pelos direitos humanos só mina a nossa humanidade.”
Muitas outras personalidades se poderiam citar para mostrar que considerar os Direitos Humanos como uma expressão cultural do Ocidente é um absurdo[3]. Valores humanos como respeito, dignidade e dever encontram-se em todo o mundo; o direito a resistir à opressão encontra-se em tradições culturais asiáticas e africanas. Algumas sociedades possuem o conceito de Direitos Humanos, sem que este esteja formulado ou registado. E sobre a atitude das religiões face aos Direitos Humanos, basta recordar a “regra de ouro” – um princípio moral fundamental – que existe em todas as religiões. A frase de Buda "agirei em relação aos outros da mesma forma que agiria para comigo"[4] e a afirmação de Maomé segundo a qual "a gentileza é um sinal de fé; quem não tem gentileza, não tem fé"[5] mostram que as religiões foram precursores éticos dos Direitos Humanos modernos.
A universalidade dos Direitos Humanos é muitas vezes deduzida por teólogos e académicos com base numa premissa religiosa simples: se todos somos filhos do mesmo Deus, então também devemos ter direitos iguais enquanto seres humanos. As Escrituras da religião bahá'í apresentam esse mesmo argumento; mas também afirmam explicitamente que todos os seres humanos devem gozar dos mesmos direitos.
Em 1912, durante a Sua visita aos Estados Unidos, 'Abdu'l-Bahá afirmou que um dos princípios bahá'ís era a formulação de um conjunto de um conjunto de direitos universais, e frequentemente repetia que a igualdade de direitos era um dos mandamentos de Bahá'u'lláh. Essa igualdade aplicava-se a homens e mulheres; e com a mesma ênfase condenava preconceitos raciais, religiosos e de nacionalidade.
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NOTAS
[1] - Citada pelo New York Times, 10 Dezembro 1995. O reconhecimento da dignidade humana tão enfatizado no princípio do desenvolvimento da pessoa humana, também é um princípio central do Confucionismo. Na perspectiva confucionista, os seres humanos são actores morais independentes que têm direitos básicos, assim como responsabilidades (The Asian Renainssance, Anwar Ibrahim)
[2] - Obinna Anyadika, "Soyinka: Power-Freedom Gulf" Terra Viva, June 18, 1993.
[3] - Ver a opinião do Dalai Lama sobre este assunto na sua declaração à conferência Mundial de Direitos Humanos (Viena, 1993): Human Rights and Universal Responsibility
[4] - Citado por Udo Schaefer, The Light Shineth in Darkness (Oxford: George Ronald, 1979), p. 149.
[5] - Citado por Marzieh Gail, Six Lessons on Islam (Wilmette: Bahá'í Publishing Trust, 1976), p. 21.
8 comentários:
Gosto muito da maneira como os budistas expõem as suas ideias, são simples e bastante claras.
Este conceito Budista de autoridade citado por Aung San Suu Kyi é um desses exemplos: “Os Dez Deveres dos Reis são: liberdade, moralidade, auto-sacrifício, integridade, gentileza, austeridade, tranquilidade, não-violência, paciência e não-oposição à vontade do povo."
Esta falta de consenso é mais um sinal de que entre os homens a harmonia é impossível sem uma guia divina, a qual é feita pelos Seus Manifestantes, fundadores das grandes religiões mundiais.
Quanto à falsa ideia da religião ser na sua essência uma fonte de mal e de haver dissenções entre as várias religiões, isso é algo que para quem conhece o conceito bahá'í de 'Revelação Progressiva' percebe ser fruto da ignorância e má vontade do homem em compreender a beleza da sabedoria divina.
As religiões podem ser consideradas culpadas na medida em que são os lideres religiosos que ao longo da história incitaram ao preconceito, ao ódio e à violência.
Isso é inegável, apesar de ser uma adulteração do objectivo da religião.
Mas continuo a achar um bocadinho ingénua a atitude dos baha'is que defendem harmonia das religiões. Parece qua alguns entre vocês pensam que essa harmonia existirá se toda a gente se converter à vossa religião.
Harmonia tem de significar saber viver com a diferença, e não um esforço de conversão no sentido de anular as diferenças.
«Mas continuo a achar um bocadinho ingénua a atitude dos baha'is que defendem harmonia das religiões. Parece qua alguns entre vocês pensam que essa harmonia existirá se toda a gente se converter à vossa religião.»
Deja vu ??...
Os grandes encontros inter-religiosos parecem-me mais manobras políticas e de publicidade do que verdadeiras tentativas de diálogo. Veja-se por exemplo a ida do Papa à Turquia. Ele acredita que Cristo é o centro da história da humanidade; se assim é então os muçulmanos estão todos enganados. Por acaso o Papa mudou de opinião sobre a religião dos muçulmanos? Não tive conhecimento disso. Então que raio de atitude de diálogo é esta em que se pensa que a verdade está apenas de um dos lados?
Está bem observado, gente.
Na verdade, nos diálogos/encontros interreligiosos aparece por vezes alguém que parece não resiste à tentação de evangelizar o seu interlocutor. É um sinal de imaturidade ao qual, naturalmente, os baha’is não estão imunes. Afinal, o diálogo entre as religiões ainda está a dar os primeiros passos.
Mas essa atitude que tem vindo a desaparecer. Cada vez é maior o número de pessoas interessadas em identificar os pontos comuns (e as diferenças) entre as diferentes religiões; a paz entre as religiões assenta no diálogo e compreensão; um proselitismo agressivo dificilmente será uma base de paz e diálogo entre diferentes comunidades religiosas.
Penso também que é importante distinguir os encontros entre dirigente religiosos (que têm um cariz político) dos encontros entre as comunidades de crentes (onde a politiquice religiosa fica quase sempre de fora).
Eu aprecio muito o conceito de ética comum a todas as religiões (a chamada “Regra de Ouro”). Quanto ao diálogo entre as religiões, é melhor um diálogo pouco aberto do que um hostilidade aberta. Eu digo isso pela experiência com vizinhos e colegas de trabalho; é melhor a gente falar-se (ainda que com maus modos) do que andarmos todos à pancada. Quem pensa o contrário só pode estar a fazer a apologia do conflito.
Carla
Querido Marco em relação às suas referências no que diz respeita às crenças religiosas e os direitos humanos, salientando as palavras da Shirin Ebadi citadas neste post onde ela diz "Nenhuma cultura tolera a exploração de seres humanos. Nenhuma religião permite que se mate o inocente." Permita-me lembrar que a inocência segundo ponto de vista religiosa é muito relativa e pode ser diferente de religião para religião tanto como no ponto de vista islâmico as pessoas que não são muçulmanas não são consideradas inocentes, ou o caso das mulheres que não cobrem os cabelos e muitos outros casos semelhantes por aí fora e sendo assim vemos que nem os terroristas matam pessoas inocentes segundo os seus pontos de vista, e uso o mesmo raciocínio em relação a tolerância da exploração dos seres humanos. A situação é muito semelhante à situação dos pais que batem nos filhos ou homens que batem na mulher, eles se acham no direito de dar este tipo de tratamento à outra pessoa porque ela sempre tem alguma culpa, nas suas leis pessoais eles estabelecem regras do género de filho é nosso e ninguém tem nada com isto ou a mulher que se comportou mal e foi castigada, a culpa é dela.
Neste sentido quando alguém aqui referiu “Os grandes encontros inter-religiosos parecem-me mais manobras políticas e de publicidade do que verdadeiras tentativas de diálogo” devo admitir que pode até parecer assim portanto é natural que o Papa pense que Cristo é o Centro do mundo e os muçulmanos por sua vez pensem o mesmo de Maomé no entanto os diálogos ajudam a chegar ao senso comum, a se entender e a aceitar que ninguém pode violar o espaço de ninguém sob desculpas religiosas. Os seminários e diálogos podem ajudar na educação e sensibilização dos mais jovens a aceitar as diferenças, a não ter medo delas sejam elas sob quaisquer das suas formas e a respeitá-las; estes diálogos podem servir também na criação dos modelos das abordagens educativas nas escolas e consciencializar as diferentes camadas da população das suas responsabilidades como seres humanos independente da religião que cada um tem.
E nós, os mais velhos pessoas comuns podemos começar a olhar menos pessimistas e em vez de criticar, podemos tentar melhorar a nossa própria atitude em relação aos outros que são diferentes de nós.
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