Se há uma ideia válida no livro O Fim da Fé, essa é a da necessidade de uso da razão na abordagem do fenómeno religioso (p.79-85). O autor apresenta exemplos sobre a facilidade com que a maioria das pessoas tende a abdicar do uso da razão ao receber informação sobre religião. Veja-se o seguinte exemplo
- O apresentador do noticiário da noite diz que há um grande incêndio no estado do Colorado. Vinte mil hectares já arderam e o fogo continua completamente fora de controlo.
- Os biólogos dizem que o ADN é a base molecular para a reprodução sexual. Cada um de nós assemelha-se aos nosso pais porque herdamos um complemento do seu ADN. Cada um de nós tem braços e pernas porque o nosso ADN codificou as proteínas que os produziram durante o nosso desenvolvimento inicial.
- O papa diz que Jesus nasceu de uma mãe virgem e que ressuscitou fisicamente depois de morto. Ele é o Filho de Deus, que criou o universo em seis dias. Se acreditarmos nisto, iremos para o Céu depois de morrermos; caso contrário iremos para o inferno onde sofreremos para toda a eternidade. (p.80)
Mas será que Sam Harris consegue ele próprio ser racional na análise do fenómeno religioso? Consideremos a sua atitude face às Escrituras Sagradas. Seria de esperar que o uso da razão permitisse ao autor perceber o tipo de linguagem da literatura religiosa. Certamente que poderia demorar-se reflectindo sobre os significados, os simbolismos e as imagens contidas nos Textos.
Na verdade, o autor de O Fim da Fé, não usa a razão ao analisar as Sagradas Escrituras; Sam Harris limita-se a fazer meras interpretações literais, e quando encontra algo que seja contrário ao senso comum, declara imediatamente que está na presença de mais uma prova da falsidade ou inadequação dessa religião. Poderá o uso da razão limitar-se a uma análise tão simplista da validade do fenómeno religioso? Será assim tão difícil perceber que os textos dos Livros Sagrados possuem uma linguagem própria (tal como muitas outras áreas de conhecimento e actividade humana)?
Mas voltemos à necessidade do uso da razão no fenómeno religioso.
Entre os princípios bahá'ís encontram-se a livre e independente pesquisa da verdade e a necessidade de harmonia entre fé e razão. À luz destes princípios – e lembrando que 'Abdu'l-Bahá afirmou que "qualquer religião contrária à ciência não é verdadeira" – é natural que os bahá’ís simpatizem com a ideia do usa da razão na análise do fenómeno religioso. Mas estarão os bahá'ís imunes a esta atitude de abdicar da razão quando se fala de religião?
Os bahá'ís é suposto acreditarem – tal como os cristãos – que Cristo nasceu de uma virgem (ver este post). É uma verdade oficial que, quando questionada, recebe invariavelmente uma justificação do género: "Deus é omnipotente; não há nenhuma impossibilidade nisso." Não é este tipo de resposta um convite a abdicarmos da razão? Não se está com isto a sugerir que troquemos uma "verdade oficial" por dois princípios essenciais da religião revelada por Bahá'u'lláh?
10 comentários:
"Deus é omnipotente, não há nada que não possa fazer" eu nao gosto muito desse tipo de resposta pois omnipotencia nao significa que se pode fazer o ilogico, por exemplo, Deus nao pode criar um quadrado triangular ou um que no anel dos numeros naturais 2 + 2 seja 5. infelizmente muitos fundamentalistas caem neste erro, o que nao sabem explicar simplesmente dizem "Deus pode fazer tudo", e depois tornam-se uma pretexto facil para os ateus radicais.
Marco,
Há aqui vários problemas que qualquer pessoa pode apontar ao teu comentário:
1) A linguagem não literal que defendes (e muitos outros) foi adoptada de livre vontade por qualquer religião nascida antes da idade moderna?
2) Qual é a interpretação simbólica de matar pagãos? Homossexuais? Bruxas? Complicado não é….
3) Vocês não me parecem tão diferentes assim dos outros monoteísmos do deserto Marco… mais margem de manobra e se calhar subscreviam plenamente as posições do ultra-conservadorismo religioso (isso nota-se muito na ambiguidade com que abordam qualquer assunto de ordem moral actual).
Como já disse num post recente no meu espaço algo que começa por um “credo” regra geral não produz bons resultados…
Abraço,
Pedro,
As tuas questões são muito pertinentes (em linguagem política diria “Porreiras, pá!”). Aqui vai a minha tentativa de resposta.
1 - Penso que a linguagem não literal está presente em todas as religiões. No fundo estamos a usar palavras e conceitos humanos para descrever algo que nos transcende. Os simbolismos, as imagens, as parábolas encontram-se em todas as Escrituras, e são formas de transmitir ideias, valores e experiências. Por exemplo: no Novo Testamento Jesus afirma “Deixa que os mortos enterrem os seus mortos”. Penso que ninguém consegue negar a existência de simbolismos nesta frase.
A dogmatização (fenómeno inevitável em todas as religiões) além de castrar o potencial das transformador das religiões, tem – entre outras coisas - empurrado os crentes para as interpretações literais.
2 - A interpretação simbólica não é como uma chave de cifra; não é algo onde se aplique sistematicamente um método e se obtenha automaticamente um resultado. Temos de atender sempre ao contexto. Que circunstâncias se viviam quando se fez uma pelo à morte de um “infiel”?
O simbolismo do conceito de “morte” está associado à não-aceitação da mensagem de um fundador de uma religião. Entende-se que os que aceitam são os “espiritualmente vivos” e os que não aceitam são os “espiritualmente mortos”.
3 - Ouvi uma vez uma pessoa dizer que os baha’is são moralmente conservadores e socialmente progressistas. Será daí que vem a ambiguidade? Dá-me um exemplo.
xrcMarco,
1- Não discordo do que dizes mas o inevitável é apenas aquilo que os crentes permitirem.
2- Matar espiritualmente envolve apedrejar até á morte? Parece-me uma interpretação simbólica bastante especifica…
3- Queres maior ambiguidade que a frase que acabaste de escrever? :) Mas assim de repente lembro-me da vossa relação que vocês insistem em manter entre a vossa fé e a modernidade (como se fosse resposta ao presente) mas uma completa incapacidade em libertarem-se dos conceitos das religiões de origem.
Pedro,
1 – Daí a necessidade e livre e independente pesquisa da verdade; daí a necessidade educação obrigatória...
2 – As leis de apedrejamento respondem a necessidades específicas de outros tempos. É daqueles assuntos que temos de ver o contexto da situação. Lembro que é aqui corremos o risco de cair em anacronismos; é muito fácil pessoas do séc. XXI criticarem o desrespeito pelos direitos humanos em séculos anteriores.
3 – Não vejo ambiguidade. Dá-me um exemplo concreto. Na verdade consideramos que a nossa fé é a adequada aos tempos que vivemos. Mas quais são os conceitos do passado a que ainda estamos presos? Dá-me exemplos.
Marco,
1- Ui… educação obrigatória… só o nome :)
2- Qual era bem a necessidade de outro tempo? Explica-me lá bem a utilidade social da brutalidade ilógica.
3- Parecem agarrados aos conceitos da definição do que é vida, na questão da sexualidade estão coladinhos à religião de onde saíram (menos a violência que deriva do controlo de um aparelho estatal).
Se me é permitido, senhores, os três pontos convergem-se num único ponto, uma vez que toda a realidade está interconexa.
Vejamos, de facto, não consigo (à semelhança de Pedro Fontela) encontrar lógica em apedrejamentos e em lapidações, daí ao invés de supor qual seria a realidade das coisas, ter feito uma pesquisa superficial no Alcorão e noutras passagens e ver o que poderia ser.
Gail, conhecida autora e tradutora de círculos religiosos, explicava que o próprio Profeta foi apedrejado em sua terra natal, conforme a seguinte passagem: «Then Khadijih died December 619) and five weeks later, Muhammad's uncle and protector. Since His own people refused Him, He then went to
another city -- Ta'if, a beautiful place about seventy miles distant, where fruit trees grew -- but the people stoned Him away. (Six Lessons on Islam, p. 8)».
No próprio Alcorão pode-se ler que o homem e o apedrejamento são o combustível da raiva do qual devemo s fugir: «O ye who believe! save yourselves and your families from the fire, whose fuel is men and stones;-over it are angels stout and stern; they disobey not God in what He bids them, but they do what they are bidden! (The Qur'an (E.H. Palmer tr), Sura 66 - Prohibition)»
Interessante, até é, notar que vários personagens bíblicos, na sua versão corânica sofreram apedrejamentos ou ameaças de tal.
Parece-me, na realidade, que a passagem do Sura 66 possa estar na origem da má interpretação que levou à manutenção da lapidação quando, o próprio Profeta foi vítima de tal.
Ou seja, uma vez mais, não é a religião que é a fonte do mal, mas as interpretações que os crentes fazem da verdadeira essência, pensando que sabem mais (ou mais claro) que a própria Manifestação Divina.
É exactamente escondendo-se atrás do pano das interpretações que conjuntos de crentes religiosos deturpam a essência da religião.
Quanto às generalizações do Pedro Fontela acerca dos bahá'ís, peço-lhe que verifique a opinião dos demais bahá'ís sobre as coisas. A opinião dos poucos bahá'ís que uma pessoa conhece não é a opinião de todos os bahá'ís, incorrendo-se a generalizações, na minha óptica, redutoras (tão redutoras como as interpretações que validam a lapidação, ainda que com consequências menos nefastas, naturalmente).
Não acredito que os bahá'ís sejam moralmente relativistas ou moralmente absolutistas, ou socialmente conservadores ou socialmente progressistas. Qualquer movimento que surja trazendo em si novos paradigmas de pensamento não pode ser definido com pressupostos que definiam modelos precedentes. A relatividade trazida por Einstein não poderia ser explicada nos parâmetros newtonianos, ou a evolução wallace-darwinista não pode ser explicada com conceitos de Lamarck.
A fé bahá'í tem uma visão própria da realidade social (livre da agressividade e da violência extremista) e também da necessidade compulsória da educação (repare-se no termo: compulsória implica uma necessidade vital, mas que não se faz uma obrigatoriedade cega).
Uma das diferenças, Pedro e Marco, entre as religiões com as quais a Fé Bahá'í tem relação (Islão, sufista, xiita e sunita, Cristianismo, Zoroastrianismo e Judaísmo) é que a ausência de clero nos permite que todos tenhamos uma opinião, mas que não a podemos impor sobre os demais como a realidade absoluta. Sob a consulta e trocas de ideias (como as que surgem neste blog, como nestes comentários) é que nos pode permitir encontrar uma faísca de verdade.
E, por isso, o meu muito obrigado a ambos!
1 - Não percebi...
2 – Ops! "As leis de apedrejamento respondem a necessidades específicas de outros tempos" foi uma gaffe de todo o tamanho! O que eu queria dizer é que os valores eram diferentes.
3 – Na questão da definição do que é a vida, penso que somos bem diferentes. Para a maioria das religiões teístas consideram a vida como uma espécie de purgatório; daqui vamos para o paraíso ou para o inferno; as religiões monistas consideram-na como um local de aperfeiçoamento permanente onde regressamos ciclicamente. Para os baha’is, não existem estes conceitos de inferno, paraíso ou reencarnação. A vida é apenas uma etapa da nossa existência; aqui devemos preparar-nos para a etapa seguinte da nossa existência.
O sexo nada tem de sujo ou indigno. O acto sexual é considerado um impulso natural, que encontra a sua expressão mais digna num casamento monogâmico. Onde é que isto é semelhante ao Islão?
Sem paciência para ler tudo isto só quero perguntar porque esta defesa e este debate sempre para provar as leis islâmicas?
Porquê é que vcs não dão hipótese de que as leis do Alcorão sejam mesmo cruéis e injustas?
Meus queridos aceitar o Islão como sendo uma religião divina não é sinónimo de se tornar muçulmano ou aceitar as suas leis como sendo para o mundo de hoje…
Acho que simplesmente o tempo de Islão passou e as suas leis muito boas para a sua época porém ilógico e inadmissível para hoje.
Marco,
Se calhar não será "expressão mais correcta" mas única aceitável... se isso não é limitativa eu não sei o que será.
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