domingo, 24 de maio de 2009
António
O primo António foi uma figura única na minha infância e juventude. Tinha mais catorze anos do que eu, e era, entre os primos mais velhos, o que dava mais atenção às crianças e aos jovens da família. Nos fins-de-semana que íamos ver as tias à Ordasqueira (perto de Torres Vedras) tínhamos a esperança de o encontrar. Com o António havia sempre programa.
Podíamos jogar à bola no pátio, andar de patins, experimentar andar empoleirado numas andas, disparar com uma pressão de ar, andar de bicicleta ou a cavalo. E se a chuva nos obrigava a ficar em casa, havia jogo de cartas (king, crapô,...) ou um trivial pursuit. E havia ainda as histórias dos tempos em que tinha estado no colégio de Sto Tirso, histórias que pareciam melhores que os livros da Enid Blyton.
As ausências do António tornavam o fim-de-semana enfadonho. "O António tem que estudar...”, dizia a tia Anita. "Os primos não estão cá. Foram de férias para a Ericeira...". Houve uma fase em que o Tó estava na tropa; aparecia menos vezes. E depois uma ausência prolongada; "Foi para guerra, na Guiné". E por fim reapareceu. Com muitas histórias para contar.
À medida que o tempo passava, as conversas do António acompanhavam as nossas preocupações. "Tenho ali um livro de Análise Matemática, quando estive no Técnico... Vou lá buscar que aquilo deu-me imenso jeito..."; "Tens o Prof Girassol? Ah ah ah ah Vais ter que estudar um bocado!"; "Tens de ir lá visitar a Central de Setúbal para veres como aquilo funciona."
Apesar de ser Engº Electrotécnico, o Tó decidiu prosseguir os projectos agrícolas do pai (o tio Augusto). As idas à quinta D. Rodrigo tornaram-se uma das suas rotinas diárias; e aos fins de semana ouvíamos as suas preocupações com cereais, vinho, bacêlos, misturadas com desabafos contra os responsáveis pela situação da agricultura portuguesa.
Os anos passaram mas o Tó, apesar de consumido com as suas preocupações agrícolas, sempre tinha tempo para os mais novos. Há três semanas atrás ví-o brincar com os meus filhos; encheu o pátio com serpentinas, para grande alegria dos miúdos. Lembrei-me que tinha feito o mesmo comigo há quase quarenta anos. Nesse dia voltou a recordar os tempos da Guiné: "Tinha lá um alferes artilheiro que fazia levantamentos muito rigorosos; identificava as clareiras onde o inimigo podia fazer fogo contra nós. Sempre que éramos atacados, ele sabia para onde devíamos responder...". "Tenho de filmar estas histórias", pensei para comigo.
Há uma semana veio o choque: "O António teve um AVC. Está no hospital das Caldas!" E dias depois: "Agravou-se. É bom que nos preparemos para o pior".
O António acabou por falecer um dia depois. Tudo tão rápido que ainda hoje não dá para acreditar! Viveu apenas sessenta anos. Só sessenta anos! A Igreja encheu-se de gente e de flores numa última homenagem. Percebi que além ter sido um primo fantástico, ele era enorme na sua generosidade e bondade.
Fisicamente, o António já não está connosco. Já não vou poder filmar as suas memórias da Guiné, nem os meus filhos terão o prazer da sua amizade. Restam-me as recordações que guardo dele, que ficarão comigo para sempre.
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3 comentários:
Só fisicamente é que não está convosco... A essência vai permanecer para sempre!
Que privilégio ter-se um António nas nossas vidas!
Marco, bonita homenagem a este primo.
Obrigada mano pela palavras sobre o Antônio.
As brincadeiras na Ordasqueira eram sempre MAIS diferentes, sempre haviam um programa diferente e as coisas que saiam do sotão da Tia Anita nunca acabavam ...como disseste, foi assim para nós e se estava repetindo para nossos filhos. Sempre que chegavam a Portugal, meus filhos perguntavam quando vamos encontrar o "Tio" Tó?
Foi uma festa quando nos veio visitar aqui em Curitiba, as crianças adoraram mostrar todos os pontos típicos, agora era a nossa vez de contar histórias!
Na noite de terça para quarta (20/05)feira sonhei que algo não estava bem com o Antônio...achei que eu estava impressionada já que a distância parece que aumenta TUDO. De manhã chegaram as noticias com o telefonema da mãe.
Sofia
Este post é extraordinário. Gerou em mim uma afinidade por este senhor. Obrigado por isso.
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