Daniel Oliveira escreve hoje no Expresso:
(...)
O primarismo está a tornar-se num ar do nosso tempo. É ele que faz crescer os fundamentalistas religiosas e as leituras literais da Bíblia e do Corão. E o primarismo atrai primarismo. Cria um manto espesso de tolerância e ignorância, de estupidez e incomunicabilidade. No tempo da frase curta, da declaração bombástica, do escândalo sem sentido da história, o primarismo é mais forte do que qualquer ideia. O que é mais extraordinário é que seja eu, um colunista da espuma dos dias, a dizê-lo a propósito de um escritor, que tem outro tempo para respirar, que pode ir muito além do espectáculo da polémica fácil.
Recuso-me a ser levado nesta avalancha. Esta avalancha que resume o cristianismo à sua caricatura. Que resume o islamismo à sua violência, que resume o judaísmo aso avanços e recuos de um Estado. Que resume o ateísmo a uma nova religião científica que esmaga milénios de história. Não, nenhum dos livros das três religiões monoteístas se explica com citações escolhidas ao acaso. E não, não é preciso ser cristão para sentir comoção com o ‘Cântico dos Cânticos’. Não é preciso ser crente para perceber que a religião condensa em si as camadas da história de que se fez a humanidade. Que ela tem um tempo e um ritmo que não cabem em conferências de imprensa. Não é preciso ser religioso para compreender esta permanente procura do sentido da vida e da imortalidade.
Eu, ateu convicto desde o dia em que penso, não aceito esta nova moral em que tudo se resume à dimensão do indivíduo. Em que todas as convicções colectivas, todos os ritos humanos, são vistos como manifestações de obscurantismo acrítico. Não perceber o que de mais profundo e complexo tem a fé humana é não perceber nada da humanidade. E se a um escritor lhe escapa o que de essencial há na sua espécie...
1 comentário:
A piada do texto está em alguém proeminente do Bloco atacar o primarismo. Se o primarismo afecta assim tanto o Daniel Oliveira que tal começar pela própria casa. Quanto ao conteúdo (citado), é o discurso de quem não acredita em algo transcendente. Nada de levar muito a sério isso das convicções religiosas. Para os que não creêm, fica a postura condescendente - "aquilo é mentira, mas tem alguma sabedoria humana, que pode ser aproveitado em termos sociais". Para os que creêm, a postura de contenção - "eles que acreditem no que quiserem,desde que não levem as coisas muito a peito". É dentro deste estreito limite que a religião é aceitável. Se alguém não respeitar limites, a velha intolerância, primarismo de primeira água, está de volta.
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