sábado, 25 de agosto de 2018

Os Bahá’ís e as Armas de Fogo

Por David Langness.


Cresci a caçar e a pescar no estado de Washington (EUA). Os meus pais tinham cinco filhos, e pouco dinheiro; por isso, durante minha infância, apanhávamos ou matávamos muita de nossa comida.

O meu pai, oficial de infantaria nos fuzileiros durante a Segunda Guerra Mundial, ensinou-me a disparar com armas de fogo. Era um atirador experiente e tinha treinado fuzileiros no campo de tiro; preocupava-se profundamente com a segurança das armas. Eu era o mais velho dos seus filhos e ele ensinou-me a conhecer e a compreender o poder das armas, a usá-las com cuidado extremo e a respeitar o perigo grave que representavam.

Quando eu vinha da escola, a minha mãe costumava pedir-me para ir buscar o jantar. Não ia à loja. Em vez disso, pegava na minha espingarda de calibre 16 e no Jinx (o meu cão de caça) e andava pelos campos da quinta à procura de um faisão, um pato ou um ganso que pudéssemos comer naquela noite.

Não passávamos fome. À mesa durante o jantar, tinha um jogo com os meus irmãos e irmãs - enquanto comíamos os pássaros que meu pai ou eu tínhamos caçado, tentávamos ver quem encontrava na sua comida o maior número de chumbos da munição da espingarda. Juntávamos os nossos pratos e contávamos os chumbos. Quem encontrava mais chumbos comia a sobremesa primeiro.

Quando fiz 12 anos, chegou o momento do ritual padrão de passagem na vida de um menino na América rural - caçar o meu primeiro veado. O meu pai, que trazia suficiente carne de veado para casa todos os anos para nos alimentar durante o inverno, levou-me a caçar. Depois de um dia frio na floresta, vimos um grande macho. Apontei a minha arma. Então, de repente, percebi, ao olhar para aquele animal lindo através da mira telescópica na espingarda do meu pai, que não conseguia puxar o gatilho. Sabia que o animal representava comida para a minha família - mas, por alguma razão desconhecida, tomei a decisão de não disparar. Senti-me muito mal, mas o meu pai – honra lhe seja feita - compreendeu. Agora, olhando para trás, acredito que aquele momento representou o surgimento de algo espiritual em mim.

Naquele dia, larguei as armas para sempre.

Seis anos mais tarde, quando tinha 18 anos, tomei duas decisões importantes. Tornei-me Bahá’í e registei-me no recrutamento militar como objector de consciência. Os ensinamentos Bahá'ís ensinaram-me claramente que eu deveria perder a minha própria vida em vez de tirar a vida de outra pessoa:
Que ninguém lute contra outro, e que nenhuma alma mate outra; isto, em verdade, é o que vos foi proibido… O quê? Mataríeis aquele a quem Deus vivificou, a quem Ele dotou de espírito através do seu sopro? Severa seria, então, a vossa transgressão perante o Seu trono! (Bahá’u’lláh, The Kitab-i-Aqdas,¶73)
Quando li estas palavras no Livro Mais Sagrado de Bahá’u’lláh, percebi imediatamente que não podia matar outro ser humano. Assim, com o apoio dos Bahá’ís e da minha nova Fé, solicitei e recebi o estatuto de objector de consciência; isto significava que podia ser chamado para o Exército, mas não usaria armas, nem seria treinado para matar.

Em Julho do ano seguinte, o Exército enviou-me para o Vietname e, durante um ano, vi o que as armas fazem aos seres humanos. Sim, elas matam pessoas, mas não apenas com balas. Elas também matam o espírito do assassino. A carnificina e a morte ao meu redor fizeram-me perceber a sabedoria do mandamento de Bahá’u’lláh.

Quarenta anos depois, infelizmente, as nossas sucessivas guerras ajudaram a transformar a América numa cultura de armas. Existem mais armas mortais do que pessoas no nosso país. As armas tornaram-se fáceis de obter e fáceis de usar, e nos EUA morrem mais pessoas devido a armas de fogo do que em qualquer outra nação industrializada.

Então, o que acreditam os Bahá’ís sobre armas? Primeiro, uma vez que Bahá’u’lláh disse que é melhor ser morto do que matar, os Bahá’ís não tiram a vida dos outros. Além disso, Bahá’u’lláh apelou ao desarmamento de todo tipo de armas, não apenas por nações, mas por indivíduos. Consequentemente, a lei Bahá’í apenas permite a posse e o porte de armas se for absolutamente necessário:
Bahá’u’lláh confirma uma determinação que torna ilegal o porte de armas, a menos que seja necessário fazê-lo. Em relação às circunstâncias em que o porte de armas pode ser “essencial” para um indivíduo, ‘Abdu’l-Bahá dá permissão a um crente para autoprotecção num ambiente perigoso. Há uma série de outras situações em que as armas são necessárias e podem ser legitimamente usadas; por exemplo, em países onde as pessoas caçam a sua comida e roupas, e em desportos como tiro desportivo, tiro com arco, e esgrima. (The Kitab-i-Aqdas, p. 240)
Descrevendo os Bahá’ís, Bahá’u’lláh disse:
Deus misericordioso! Estas pessoas não precisam de armas de destruição, na medida em que elas se prepararam para reconstruir o mundo. As suas hostes são as hostes das boas acções e as suas armas as armas da conduta íntegra. (Baha'u'llah and the New Era, p. 170)
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Texto original: Baha’is and Guns (www.bahaiteachings.org)

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David Langness é jornalista e crítico de literatura na revista Paste. É também editor e autor do site www.bahaiteachings.org. Vive em Sierra Foothills, California, EUA.

sábado, 18 de agosto de 2018

Cientismo: Se não pode ser provado cientificamente, não existe?

Por David Langness.


Tenho um amigo que quando lhe perguntam qual é a sua religião, ele responde: “Acredito no cientismo”.

“O que é isso?” pergunta a maioria das pessoas.

E geralmente, dá a seguinte resposta: “É a crença de que nada é verdade a menos que possa ser provado cientificamente”.

Numa ocasião tivemos uma discussão sobre esta sua resposta tradicional.

Perguntei-lhe: “Consegues provar isso cientificamente?”

Ele pensou um pouco e acabou por admitir: “Não”.

O cientismo é provavelmente a religião prevalecente no mundo de hoje, especialmente entre as classes educadas na cultura ocidental; mas baseia-se num dogma irracional e contraditório. Defende que apenas podemos acreditar nas coisas palpáveis. Se podemos medir, quantificar ou observar uma coisa no mundo dos sentidos – afirma o crente no cientismo – isso significa que a coisa é verdadeira. Caso contrário, é falsa ou inexistente.

Este raciocínio lógico tem um problema grave – não consegue provar a premissa central do cientismo usando a ciência, razão ou empirismo. O seu ensinamento central – de que a ciência tem acesso a todas as verdades importantes da vida – nega a existência de qualquer coisa que não possamos observar no mundo físico.

Os filósofos do cientismo, que aceitam apenas e exclusivamente aquilo que se pode medir e avaliar, consideram a ciência e o método científico como a única forma aceitável para compreender toda a realidade. Os novos ateus – escritores como Sam Harris, Richard Dawkins, Christopher Hitchens e Daniel Dennett – geralmente aceitam a ideia de que Deus não pode ser provado cientificamente, e que tudo o que existe no universo físico pode ser explicado de forma científica. Os ensinamentos Bahá’ís definem este tipo de filósofos como materialistas:
Os filósofos do mundo estão divididos em duas categorias: os materialistas, que negam o espírito e a sua imortalidade, e os filósofos divinos, os sábios de Deus, os verdadeiros iluminados que acreditam no espírito e na sua continuidade. Os filósofos antigos ensinaram que o homem consistia apenas de elementos materiais que compunham a sua estrutura celular e que quando esta estrutura elementar se desintegrava, a vida extinguia-se. Defendiam que o homem é apenas um corpo, e que surgiu da composição elementar de órgãos e das suas funções, sentidos, poderes e atributos, e que estes desaparecem completamente com o corpo físico. Isto é praticamente a afirmação de todos os materialistas. (‘Abdu’l-Bahá, The Promulgation of Universal Peace, p. 239)
‘Abdu’l-Bahá ilustra a falácia desta ideia ao examinar a natureza dos seres humanos, e assinalando o facto inegável da nossa consciência humana provar que possuímos uma realidade superior e mais complexa do que a restante criação material:
O homem possui as emanações da consciência; ele tem percepção, imaginação e é capaz de descobrir os mistérios do universo. Todas as indústrias, invenções e recursos que rodeiam a nossa vida diária foram, em determinado momento, tesouros ocultos da natureza, mas descobriu-as todas e sujeitou-as aos seus propósitos. Segundo as leis da natureza deveriam ter permanecido latentes e ocultas; mas o homem, transcendendo estas leis, descobriu estes mistérios e trouxe-os do plano invisível para o reino do conhecido e do visível. Como é maravilhoso o espírito do homem! Um dos mistérios dos fenómenos naturais é a electricidade. O homem descobriu o seu poder ilimitado e usou-a para seu proveito… O homem compreendeu que o sol está imóvel enquanto a terra gira ao seu redor. O animal não pode fazer isto. O homem percebe que a miragem é uma ilusão. Isto está para lá do poder do animal. O animal apenas pode perceber através das impressões sensoriais e não pode perceber realidades intelectuais. O animal não pode conceber o poder do pensamento. Isto é um tema intelectual abstracto e não está limitado aos sentidos. O animal é incapaz de perceber que a terra é redonda. Em resumo, os fenómenos intelectuais abstractos são poderes humanos… O homem transcende a natureza, enquanto o mineral, o vegetal e o animar estão subordinados a ela. Isto apenas pode ser feito através do poder do espírito porque o espírito é a realidade. (‘Abdu’l-Bahá, The Promulgation of Universal Peace, p. 240)
As pessoas têm poderes, faculdades e virtudes que nenhuma outra criatura possui. Produzimos arte, construímos civilizações, criamos culturas, descobrimos verdades científicas que estavam ocultas, e percebemos o que existe para lá do imediato e do físico. E acima de tudo, a vasta maioria das pessoas acredita na existência de Deus, que cada um de nós tem uma alma imortal, e que o propósito da vida e a base da moralidade inclui conhecer Deus. Numa perspectiva Bahá’í, esta combinação de atributos e a sua expressão consistente ao longo de milhares de anos, demonstra de forma definitiva que os humanos possuem uma realidade espiritual que transcende as limitações físicas e palpáveis do mundo material:
Nos poderes físicos e dos sentidos, porém, o homem e o animal são parceiros. De facto, o animal é frequentemente superior ao homem na percepção dos sentidos. Por exemplo, a visão de alguns animais é extremamente precisa e a audição de outros é muito apurada. Considere-se o instinto de um cão: como é superior ao de um homem. Mas apesar do animal partilhar com o homem todas as virtudes e sentidos físicos, foi concedido ao homem um poder espiritual que os animais não possuem. Isto é uma prova de que existe algo no homem que esta acima a além do talento animal – uma faculdade e virtude inerente ao reino humano que está ausente nos reinos de existência inferior. Isto é o espírito do homem. Todas estas maravilhosas realizações humanas devem-se ao poder eficiente e avassalador do espírito do homem. Se o homem estivesse privado deste espírito, nenhuma destas realizações teria sido possível. Isto é evidente como o sol do meio-dia. (‘Abdu’l-Bahá, The Promulgation of Universal Peace, pp. 241-242)

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Texto original: Scientism: If You Can’t Count It, Does It Count? (www.bahaiteachings.org)

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David Langness é jornalista e crítico de literatura na revista Paste. É também editor e autor do site www.bahaiteachings.org. Vive em Sierra Foothills, California, EUA.

sábado, 11 de agosto de 2018

As revoluções de 1848 e a sua relevância nos dias de hoje

Por Tom Lysaght. 


Há muito que o ano de 1848 é conhecido na Europa como “O Ano da Revolução”.

O rei Luís Filipe foi forçado a abdicar do trono francês e fugiu do país disfarçado de comerciante. Enquanto a república era proclamada em França, a Hungria declarava a sua independência da Áustria. Em Viena, enquanto os revolucionários entravam no palácio real, o rei Ferdinando abdicava do trono e fugia da Áustria. Nos estados italianos, os rebeldes seguiam o exemplo húngaro e austríaco e expulsavam os vice-reis e governantes, e o Papa ficava apreensivo. Durante a noite, vestido como se fosse um simples sacerdote, o Papa Pio IX fugiu de Roma. Em Inglaterra, 100.000 membros do movimento Cartista reuniam-se para marchar em direcção ao Parlamento. A Suécia, a Irlanda e a Dinamarca também tiveram as suas revoltas em 1848.

Convenção de Seneca Falls
Uma revolta mais pacífica - mas não menos radical e transformadora - ocorreu numa aldeia no norte do estado de Nova Iorque nesse mesmo ano. Esse movimento foi único pelo facto da quase totalidade dos seus 300 participantes serem mulheres; a excepção foi Frederick Douglass, um abolicionista e ex-escravo.

A Convenção de Seneca Falls é considerada a primeira conferência sobre direitos das mulheres. Curiosamente, os anúncios sobre este encontro apareceram nos jornais no dia 14 de Julho, o mesmo dia em que terminava outra conferência, onde se anunciava a emancipação da mulher. Infelizmente, o mundo Eurocêntrico ignorou durante muito tempo o que aconteceu na aldeia de Badasht, na Pérsia, local cujo nome um dia será tão familiar para nós como Belém.

Em 2017, deu-se um reconhecimento extraordinário evento. Em várias celebrações realizadas em todos os países do mundo, celebrou-se o bicentenário do nascimento de Bahá’u’lláh, uma das duas personagens que convocaram essa conferência profundamente marcante.

De facto, houve dois eventos tremendos na Pérsia em Julho de 1848, que podem ser coonsiderados como a principal causa das repercussões revolucionárias que sentiram no resto do mundo durante esse ano.

Desde essa década, reis e clérigos começaram a ser despojados de poder e caíram às mãos do povo.

Nessa mesma década de 1984, uma febre milenarista varreu os mundos Judaico-Cristão e Muçulmano. Rabinos e académicos Judeus, como Judah Alkalai e A.H. Silver consideravam 1840 como o tempo do Messias; “adventistas” como William Miller afirmavam que 1844 era a data prometida pela Bíblia para o regresso de Cristo; templários alemães foram viver para a Palestina e construíram as suas casas no sopé do Monte Carmelo para estarem próximos quando ocorresse a Segunda Vinda; os Muçulmanos consideravam o ano 1260 A.H. (1844 EC) como o momento em que o Qaim (ou o Mahdi) – o Prometido do Islão – surgiria como salvador espiritual.

Apesar dessas expectativas e profecias da década 1840, e das mudanças sociais revolucionárias iniciadas nesse tempo, a maioria dos Judeus ainda espera pelo seu Messias, tal como a maioria dos Cristãos aguarda o regresso de Cristo, e a maioria dos Muçulmanos espera pelo seu Qa’im. Estariam as expectativas e profecias incorrectas? Será que as mudanças sociais mundiais da década de 1840 forma mera coincidência? No seu livro O Ladrão na Noite, William Sears aborda este enigma.
Quando uma abundância esmagadora de provas aponta apenas para uma conclusão possível, e essa conclusão Mostra estar errada, nunca é sensato descartar todas as evidências como estando erradas. É mais sensato assumir que talvez as evidências estejam correctas, e que outra interpretação totalmente diferente dos factos, ou uma conclusão completamente diferente se possa extrair dessas mesmas provas. (p.30)
Os Bahá’ís apresentam uma conclusão alternativa.

As profecias bíblicas referem que “duas testemunhas” (Apocalipse 11:3) são necessárias para dar início ao tão aguardado Dia Prometido; por seu lado, o Alcorão profetiza que “dois toques de trombeta” (39:68) anunciarão o dia da renovação. Em Julho de 1848, na Pérsia, foi reunido um tribunal para inquirir um conhecido homem santo, considerado herético, e conhecido como Báb (“A Porta”). No entanto, o Báb usou essa oportunidade de julgamento público para proclamar perante as mais altas instituições persas, que Ele era o Prometido aguardado, não só pelo Islão, mas também por todas as religiões.

Simultaneamente, num outro local mas com o mesmo propósito do Báb, Bahá’u’lláh era o principal impulsionador daquela histórica conferência de Badasht, onde a emancipação da mulher foi primeiramente proclamada por Tahirih, uma poetisa e heroína Babi.

Poderiam um prisioneiro e um nobre persas ser os dois portadores de uma nova mensagem divina para a humanidade? É precisamente isso que os Bahá’ís em todo o mundo celebram durante os anos dos bicentenários dos nascimentos de Bahá’u’lláh e do Báb. Mas porque o primeiro princípio da sua religião é a livre e independente pesquisa da verdade, Eles não queriam que nos limitássemos a acreditar neles. No fundo, a religião não pode continuar a ser uma consequência do local onde nascemos ou uma questão de fé cega. Em vez disso, Eles querem que investiguemos as fontes:
Em verdade digo, este é o Dia em que a humanidade pode contemplar a Face e ouvir a Voz do Prometido. Ergueu-se o Chamamento de Deus e a luz do Seu semblante levantou-se sobre os homens. Compete a todo o homem eliminar todo o vestígio de palavras fúteis da tábua do seu coração, e olhar, com mente aberta e sem preconceitos, os sinais da Sua Revelação, as provas da Sua Missão, e as marcas da Sua Glória. Grande é, de facto, este Dia! As alusões que lhe são feitas em todas as Sagradas Escrituras como o Dia de Deus atestam a sua grandeza. A alma de todo o Profeta de Deus, de todo o Mensageiro Divino, estava sequiosa por este Dia maravilhoso. As diversas raças da terra, de igual modo, desejavam alcançá-lo… Deus permita que a luz da unidade possa envolver toda a terra. (Baha’u’llah, Gleanings from the Writings of Baha’u’llah, VII)

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Texto Original: The Revolutions of 1848, and Their Relevance Today (www.bahaiteachings.org)

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Tom Lysaght é autor de várias peças de teatro, nomeadamente “Heralds of the Covenant” (que foi exibida Durante o Congresso Mundial Bahá’í de 1992). Foi director da Radio Baha’i do Lago Titcaca (Peru) e é autor do site Your Creative Stage que pretende lançar o teatro como instrumento de construção de comunidades.

sábado, 4 de agosto de 2018

Gentrificação, Justiça e Turismo

Por Maya Mansour.


Estou num café na Cidade do México, a escrever directamente num computador portátil que me ofereceram há alguns dias antes de ter saído de Chicago.

Quando planeava esta viagem, fiz muitas pesquisas com a minha amiga. Procurámos diversos locais, avaliando custo e possíveis barreiras linguísticas, o nosso entendimento cultural (ou a falta dele) e o clima político. Para cada cidade que pensámos visitar, fui ler as notícias locais para perceber o que estava a acontecer no terreno, e comparei o que lia com websites vocacionados para o turismo – que frequentemente apresentam uma perspectiva distorcida de um local para atrair turistas como eu.

A Cidade do México ajustava-se ao nosso orçamento; ambas falamos um pouco de espanhol, e sentimo-nos geralmente confortáveis ao visitar a cidade. Chegámos entusiasmadas por visitar a maior metrópole da América do Norte, provar a famosa comida de rua, apreciar a beleza dos diversos murais da cidade e diversas expressões artísticas de artistas e artesãos locais. Hoje, quando faltam dois dias para terminar a nossa viagem, posso dizer que cumprimos o propósito desta viagem. Fizemos novos amigos quando experimentámos a comida de rua, visitámos locais históricos, mercados movimentados e parques verdejantes. Perdi a conta à quantidade de magníficos murais coloridos que visitámos, tal com a quantidade de objectos de fabrico manual, úteis e decorativos, que tornam esta cultura conhecida por cultivar beleza que é normal para os locais e fascinante para estrangeiros como eu.

Suspeito que é esta beleza do dia-a-dia que atrai imensa gente a esta cidade, assim como os preços baixos, especialmente se comparados com os Estados Unidos. Enquanto aqui estivemos, andámos com um grupo de turistas americanos mas também fizemos compras em lojas americanas. Além dos restaurantes de fast-food como KFC e Dominos, também estivemos em lojas e restaurantes mais caros. Estes estabelecimentos são apoiados por investidores americanos e canadianos e sentem-se como tal. Em alguns locais senti-me como se estivesse nas zonas que estão na moda em Los Angeles, Chicago ou Nashville, a minha cidade natal, onde existem locais que são irreconhecíveis para mim. Estas empresas no México – além da já desequilibrada dinâmica de poder entre EUA e México que beneficia mais um país do que outro – criaram agitação aqui na cidade.

Cidade do México
As autoridades perseguem vendedores ambulantes, favorecendo as boutiques mais caras. Desconhecíamos a extensão desta tendência até que há alguns dias vimos pessoas a ocupar parte do passeio na rua onde nos encontrávamos. Há três dias atrás, regressávamos ao nosso alojamento, quando frente ao edifício vimos um acampamento improvisado. No início pareciam ser tendas com pessoas sem-abrigo, mas quando nos aproximámos vimos a polícia com equipamentos anti-motim, sentados a pouca distância das pessoas que nas tendas jogavam às cartas.

Ficámos curiosas para saber mais. Procuramos o nome da nossa rua no twitter e descobrimos fotos de pessoas a protestar. Apelavam ao fim da gentrificação da cidade e exigiam um tratamento mais justo para os artesãos locais. Quanto mais lia e questionava os amigos que falavam melhor espanhol do que eu, mais o meu coração se apertava. A gentrificação é um problema mundial, desde Nova Iorque e a Cidade do México até às grandes cidades de África. A colonização ainda acontece hoje disfarçada de renovação e revivalismo urbano. As pessoas de classes mais abastadas continuam a lucrar com a exploração de pessoas com menos posses, perpetuando um ciclo de pobreza e alargando o fosso entre ricos e pobres. Por exemplo, o salário mínimo no México é 5 USD por dia; nos Estados Unidos é 7.25 USD por hora. Este nível de injustiça económica, que os ensinamentos Bahá’ís denunciam, deve dar lugar, através de legislação e de meios espirituais, a um equilíbrio mais justo entre riqueza e pobreza: Devem existir leis especiais para lidar com estes extremos de riqueza e carência. Os membros do governo devem considerar as leis de Deus quando concebem planos para governar o povo. Os direitos gerais da humanidade devem ser salvaguardados e preservados.
Os governos dos países devem obedecer à Lei Divina que concede justiça igual para todos. Esta é a única forma pela qual a deplorável superabundância de riqueza imensa e a pobreza miserável, deprimente e degradante pode ser abolida. Só quando isto for feito é que se terá obedecido à Lei de Deus. (‘Abdu’l-Bahá, Paris Talks, p. 153.)
Os ensinamentos Bahá’ís dizem que a justiça nos ajuda a ver com os nossos próprios olhos e a saber com o nosso próprio conhecimento:
Ó Filho do Espírito! A mais amada de todas as coisas, aos Meus olhos, é a Justiça; não te desvies dela, se Me desejas, nem a descures, para que Eu possa confiar em ti. Com a sua ajuda, verás com os teus próprios olhos e não com os olhos de outros; saberás pelo teu próprio conhecimento e não pelo conhecimento do teu próximo. Pondera isto no teu coração; como te incumbe ser. Em verdade, a justiça é a Minha dádiva para ti e o sinal da Minha misericórdia. Mantém-na, pois, diante dos teus olhos. (Bahá’u’lláh, As Palavras Ocultas, do árabe, #2)
Lembrei-me destas palavras de Bahá’u’lláh sobre a justiça enquanto me debatia com o meu papel neste problema enorme e complexo, que apenas agora encontrei e tentei compreender. A gentrificação está a acontecer em todas as grandes cidades, mas torna-se muito específica quando acontece onde moramos.

Questiono o meu papel enquanto turista na gentrificação das cidades que visitei ou para onde pensei ir viver. Porque me identifico como uma cidadã do mundo, devido à mentalidade com que os meus pais me educaram e devido às origens geográficas da minha família: o meu pai é do Irão e a minha mãe da Indonésia.

Tive sorte ao viajar para outros países, experimentar a sua comida, conhecer a sua história, museus e os seus habitantes locais. Geralmente regresso a casa com a sensação que cresci num limbo, com todas as coisas que vi e todo o conhecimento que adquiri. Percebo que todos somos humanos, que todos estamos interligados e também que tenho a responsabilidade de agir como convidada nos locais que não conheço. Aprendi a ter cuidado quando falo em nome daqueles cujas experiências são completamente diferentes das minhas.

E enquanto termino este artigo, transferindo-o do computador para o telemóvel, percebo que nunca terei todas as respostas sobre como ser a viajante perfeita. Vou continuar a visitar novos locais porque acredito que conhecer estas situações em primeira mão é uma experiência preciosa. Sinto sorte de poder passar parte do meu tempo a pensar como criar um mundo mais justo para todos. E quando visito novos locais, tento ser humilde, disposta a aprender e a não julgar, na esperança de que este mundo cada vez mais pequeno e interligado tenha um pouco mais de sentido.

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Texto Original: Gentrification, Justice and Tourism (www.bahaiteachings.org)

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Maya Mansour estudou artes no The Evergreen State College e os seus trabalhos têm sido publicados em várias plataformas, incluindo Ebony, SoulPancake, and the Journal of Critical Scholarship on Higher Education and Student Affairs.