O meu amigo Epi, uma Testemunha de Jeová, não tinha certeza do que fazer com nosso diálogo prolongado sobre as Escrituras. Ele continuava a insistir que apenas Jesus de Nazaré era um profeta; todos os outros eram falsos. Como Bahá’í, discordei firmemente.
Os ensinamentos Bahá'ís dizem claramente que os profetas de Deus - os fundadores das grandes religiões mundiais - estão ligados numa grande corrente de revelação progressiva, formando uma sucessão de mensageiros divinos, todos eles funcionando como um corpo docente de educadores para toda a raça humana. Bahá’u’lláh, o profeta e fundador da Fé Bahá’í, escreveu:
Contempla com a tua visão interior a cadeia de Revelações sucessivas... Dou testemunho perante Deus que cada um desses Manifestantes foi enviado através da operação da Vontade e Propósito Divinos, que cada um foi portador de uma Mensagem específica, que a cada um foi confiado um Livro divinamente revelado, e encarregado de desvendar os mistérios de uma Epístola poderosa. A medida da Revelação com a qual cada um deles foi identificado foi definitivamente predestinada. Isto, em verdade, é um sinal do Nosso favor para eles, se sois daqueles que compreendem esta verdade...
Além disso, o meu amigo Epi criticou o meu uso de um certo trecho para enfatizar na forma como lemos e interpretamos as Escrituras. O trecho era este: “Estudam as Escrituras com muita atenção e julgam encontrar nelas a vida eterna. Contudo as próprias Escrituras falam de mim. E, apesar disso, não querem seguir-me para terem a vida eterna.” (João 5:38-40)
Epi respondeu que João 5:38-40 é sobre atitude ao estudar as Escrituras. Estás a estudá-las para definir a tua própria agenda ou estás a estudar para aprender os caminhos de Deus? Ele (Jesus) estava a conversar com os fariseus.
Concordei que se tratava de atitude – a atitude que se adopta em relação à nossa própria compreensão das Escrituras. Acho que você pode ver isso claramente no contexto dos versículos seguintes, onde Cristo diz aos fariseus:
Se acreditassem naquilo que Moisés disse, acreditariam também em mim, pois Moisés escreveu a meu respeito. Mas se não acreditam naquilo que ele escreveu, como podem crer naquilo que eu vos digo? (Jo 5: 46-47)
Aqui, Cristo diz explicitamente que se eles realmente entendessem as suas próprias Escrituras, veriam que Moisés estava a falar sobre o próprio Jesus Cristo. O trecho específico a que Cristo se refere é este, onde Moisés diz: “O Senhor, vosso Deus, há de dar-vos sempre um profeta como eu, escolhido entre os vossos compatriotas.” (Dt 18:15) Os fariseus não perceberam o advento de Cristo devido à forma como interpretavam as suas próprias Escrituras.
Ao longo da minha vida, durante a minha própria busca espiritual, estive prestes a rejeitar Bahá’u’lláh pela mesma razão que os fariseus rejeitaram Cristo.
Epi perguntou-me então: Porque é que lês Bíblia? Qual é o teu objectivo?
Tal como todos os Bahá’ís, acredito que os livros da Bíblia — especialmente os ensinamentos de Cristo — fazem parte da revelação de Deus à humanidade. Estudei a Bíblia quando era criança, da maneira que os meus pais e pastores me ensinaram. Memorizei alguns excertos e ouvi sermões baseados neles. Quando fui confrontada com Bahá’u’lláh, estudei-a novamente, utilizando-a como padrão na minha tentativa de provar ou refutar os ensinamentos Bahá'ís. À medida que a minha busca avançava, comecei a entender a Bíblia como sendo uma parte do registo espiritual de toda a raça humana, e não a totalidade. Tal como Paulo escreve: “Mas agora sabemos em parte...”
Hoje, eu estudo a Bíblia porque ela elucida e é elucidada por outras Escrituras. Estudo-a porque encontro nela evidências de um Deus eterno e amoroso que alimentou, vestiu e educou espiritualmente a humanidade em todas as épocas. Estudo-a porque fala de Cristo, de Moisés e de Bahá’u’lláh, e através deles, de Deus, a quem amo.
Mas acho, Epi, que parte da tua pergunta é a forma como leio as Escrituras e aquilo que me leva a conclusões das quais tu discordas veementemente. Em cada Escritura, há trechos-chave que elucidam o resto. Esses trechos, acredito, são “pedras de toque” que devem ser consultadas sempre que surgir uma questão sobre significado ou aplicação. No Evangelho, algumas desses trechos são:
- Mateus 7:7-13, em que Jesus revela aquilo que chamamos a Regra de Ouro e diz que ela é a síntese da Lei e dos Profetas.
- Mateus 22,37-40, em que Cristo reafirma os dois maiores e inseparáveis mandamentos que resumem a Lei e os Profetas: amar a Deus e amar os outros como amamos a nós próprios (aqui, Jesus está reafirmando as palavras de Moisés).
- João 15, onde Cristo lembra aos discípulos que eles não podem dar frutos a menos que permaneçam no Seu amor, e depois diz-lhes que a única maneira de fazer isso é obedecer ao Seu mandamento de nos amarmos uns aos outros tal como Ele os amou. Esta é a última coisa que Cristo lhes diz antes de ir para a cruz – e repete-a várias vezes.
- Lucas 10:25-37, em que um estudioso da lei judaica faz a Cristo uma pergunta fundamental de fé: “O que devo fazer para herdar a vida eterna?” Cristo estabelece novamente os Maiores Mandamentos gémeos, como resposta. “Faz isto e viverás”, diz Cristo, e depois ilustra o que isso significa contando a parábola do Bom Samaritano. Tenho a certeza que conhece o significado desse exemplo: um judeu é recolhido por um samaritano, embora estes dois grupos tenham estado separados devido a um ódio antigo baseado nas suas diferenças de religião.
Estas são as pedras de toque: as restantes escrituras devem ser lidas à luz delas. Se parece que há contradição entre versículos diferentes, então estas palavras de Cristo dir-me-ão como esses versículos devem ser entendidos. Além disso, se uma interpretação humana de um versículo das Escrituras viola esses ensinamentos, então não pode estar correta.
Agora, vejamos a ideia de que Deus deixou milhares de milhões de almas na ignorância — e pior, deixou-as ser enganadas por falsos profetas que vieram com os mesmos ensinamentos essenciais que Cristo trouxe. Aqui estão as palavras de Krishna, do Bhagavad Gita 8:22, sobre a importância da obediência ao mandamento do amor: “Este Espírito Supremo... é alcançado por um amor eterno. Nele todas as coisas têm vida, e dele todas as coisas vieram.”
Recorde-se que, em Mateus 7, Jesus ensina como nos devemos comportar com os outros – Ele usa o comportamento de Deus como modelo. Ele diz que se alguém pedir pão, Deus não lhe dará uma pedra. Duvido que Ele esteja falando de pão físico aqui, mas sim do Pão da Vida, que é muito mais importante. Depois de afirmar estas coisas, Jesus diz: “Ora se vocês, mesmo sendo maus, sabem dar coisas boas aos vossos filhos, quanto mais o vosso Pai que está no céu dará coisas boas àqueles que lhas pedirem!”
Vejamos novamente esta pedra de toque, porque vale a pena repetir: se um pai humano alimentasse, vestisse e educasse apenas um filho e deixasse os outros passarem fome, ficaram nus e ignorantes, consideraríamos esse comportamento criminoso. Nenhum pai amoroso trataria os seus filhos dessa maneira. Como podemos acreditar que Deus faria isso? Podemos acreditar que o Deus de Cristo escolheu um “filho favorito” para guiar, e negligenciou completamente os Seus outros filhos, permitindo que fossem vítimas de impostores astutos?
Admito que antigamente acreditei nisso. Mas percebi que as minhas crenças estavam em contradição com os princípios claros dos ensinamentos de Cristo. Eu sabia que eu, e muitos outros, tínhamos interpretado mal as Escrituras bíblicas de uma forma que se tornava “agradável aos nossos ouvidos”, como disse S. Paulo. A salvação desta situação infeliz estava nas palavras do próprio Cristo, tão brilhante quanto o sol. Quando finalmente li a Bíblia à luz dos ensinamentos que o próprio Cristo enfatizou inequivocamente, todo a contradição foi resolvida.
Tento ler todas as Escrituras no contexto desses ensinamentos-chave – aqueles que receberam ênfase especial de Cristo, de Buda, de Moisés, de Bahá’u’lláh – e não de seres humanos.
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Texto original: The Central Touchstones in Christian Scripture (www.bahaiteachings.org)
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Maya Bohnhoff é Bahá’í e autora de sucesso do New York Times nas áreas de ficção científica, fantasia e história alternativa. É também compositora/cantora (juntamente com seu marido Jeff). É um dos membros fundadores do Book View Café, onde escreve um blog bi-mensal, e ela tem um blog semanal na www.commongroundgroup.net.
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