Ciência
No livro Fé, Verdade e Tolerância: o Cristianismo e as Grandes Religiões do Mundo, Bento XVI apresenta interessantes citações alguns cientistas a propósito da relação entre ciência e religião. Heisenberg, por exemplo, é referido como acreditando no facto da ciência e religião pertencerem a duas esferas completamente distintas que não estão em competição uma com a outra: nas ciências da natureza está em causa o certo e o errado; na religião, o bem e o mal, o valor e o não valor (p.125)
Wolfgang Pauli também é citado como tendo afirmado: “A separação total entre saber e acreditar é certamente um expediente para um tempo muito limitado. No âmbito da cultura ocidental, por exemplo, poderá chegar, num futuro não muito longínquo, o momento em que as alegorias e imagens da religião habitual não terão já poder de convicção, mesmo para1 o povo simples; nessa altura, receio eu, também a ética habitual fracassará, e acontecerão coisas de um horror de que ainda não podemos fazer qualquer ideia” (p.126)
Estas citações enquadram uma ideia central sobre a forma como Bento XVI encara a relação entre ciência e religião: “Esta [a religião] não pode arrogar-se a solução de problemas que têm a sua própria especificidade, mas tem de capacitar para as decisões últimas nas quais está sempre em jogo a totalidade do homem e do mundo” (p.129)
Os textos sagrados do Cristianismo (assim como os textos da maioria das religiões mundiais) possuem poucas ou nenhumas referências à ciência e ao actual conhecimento científico. Se tivermos em conta que foi apenas nos últimos dois séculos que a humanidade assistiu a uma tremenda evolução científica, essa ausência de referências pode parecer normal. Por outro lado, na história das religiões abundam episódios em que as descobertas científicas foram vistas como ameaças (e consideradas heresias!) porque colocavam em causa interpretações literais das Escrituras.
Desta forma, quando uma autoridade religiosa questiona a ciência (ou se limita a tecer considerações sobre esta) é normal que seja vista com alguma desconfiança. No caso deste livro, é o uso de algumas palavras que suscita as minhas reservas. Por exemplo, quando Bento XVI afirma que hoje "a doutrina da criação parece ultrapassada pela teoria da evolução" (p.228), podemos perguntar porque não afirma antes "a doutrina da criação foi ultrapassada pela teoria da evolução"? Por acaso terá dúvidas sobre este facto? E quando acrescenta que a Teoria da Evolução tem subjacente uma "ética cruel" (p.162) será isso um motivo para tornar preferível o criacionismo Bíblico?
Apesar disto, existem algumas opiniões que partilho com Bento XVI. Por exemplo, acredito que Deus e a natureza são distintos (p.153-154) e que a religião não tem resposta para problemas científicos mas deve potenciar a sua solução (p. 128). E também não acredito que o progresso científico, só por si, seja uma garantia da evolução (e libertação!) humana (p.228).
Também não penso que apenas o conhecimento científico deva ser reconhecido como "verdadeiro conhecimento" (p.158) e tudo o resto sejam apenas mitos; nos livros sagrados das grandes religiões mundiais encontramos ensinamentos éticos e morais que têm sido fonte de progresso e bem-estar de inúmeras sociedades.[2] Porque não poderemos considerar esses ensinamentos como uma forma de conhecimento?
É óbvio que como Bahá'í, tenho uma vantagem clara para falar da relação entre ciência e religião. As escrituras Bahá’ís surgiram entre 1844 e 1921; nesses tempos o progresso científico dava os seus frutos, e os seus benefícios eram perfeitamente visíveis. Além disso, Bahá’u’lláh declarou que a maior bênção de Deus ao ser humano foi a razão, e afirmou que deve ser a ciência a julgar a religião, e não religião a julgar a ciência. Afirmações deste género não se encontram na Bíblia, nem em qualquer outro Livro Sagrado. Em resumo, diria que os ensinamentos Bahá'ís sobre ciência e religião, encontram eco na célebre afirmação de Eisntein: “A ciência sem religião é coxa; a religião sem ciência é cega.”
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NOTAS
[1] – Em relação à Teoria da Evolução de Darwin, Bahá’u’lláh afirmou que aquele cientista tinha descoberto parte da verdade, mas não descobrira toda a verdade.
[2] – Do mesmo modo, também não podemos negar que ao longo da história os ensinamentos dos Livros Sagrados foram manipulados, tendo inspirado os piores actos que um ser humano pode cometer. Mas o mau uso da religião não pode invalidar a religião, tal como o mau uso da ciência não pode invalidar a ciência.
7 comentários:
Este texto está escrito de forma sábia (não digo genial porque assim o comentário não passaria).
Marco,
Eu pensava que era para isso que as ciências humanas e a filosofia serviam... para distinguir o certo do errado. Um mandamento arbitrário não pode ser moral mesmo que esteja correcto.
Pedro,
Pensa nas palavras de M. Luther King: "Eu tenho um sonho que minhas quatro pequenas crianças vão um dia viver em uma nação onde elas não serão julgadas pela cor da pele, mas pelo conteúdo de seu carácter."
E nas palavras de Gandhi: "De olho por olho e dente por dente o mundo acabará cego e sem dentes."
Os ensinamentos nestas palavras têm algum valor moral? Será elas nos podem ajudar a distinguir o bem do mal?
Eu diria que sim. E, no entanto, os ensinamentos destes homens não constituem nenhuma ciência.
Marco,
Qualquer valor moral deriva a sua importância do seu resultado final e da sua lógica (o porquê). com uma lógica que vem "de cima" que não pode ser contestada a questão da moral nem sequer se põe, é apenas uma questão de obediência. Por exemplo, o caso que deste é óbvio que existem razões para justificar a convivência pacífica face ao caos de uma existência polvilhada de ódio, tal como existem óptimas razões "terrenas" para justificar todas as proibições à descriminação - nenhuma delas recorre ao mandamento divino.
Naturalmente que afirmar “Este princípio é bom porque é divino” é uma subversão do raciocínio. Pode mesmo ser um convite à “não-racionalidade” se for usado em substituição da afirmação “Este princípio é bom porque apresenta bons resultados”.
A validade de um princípio moral, também não pode ser usada como uma justificação da sua origem divina. Isso leva-nos por outras áreas, pois a prova da origem divina de um Mensageiro (e dos princípios inerentes à Sua mensagem) é sempre de carácter teológico e/ou filosófico; essas provas assentam numa coisa a que chamamos fé (e que não deve estar em oposição à razão).
Marco,
Estamos de acordo que é um apelo à não recionalidade mas se ambos aceitamos isso então acabamos onde eu comecei no primeiro comentário: se a religião por si é incapaz de criar moralidade qual é que é o seu papel nisto? Não sei se sobra muito.
Pedro,
Eu não disse que “a religião só por si seja é incapaz de criar moralidade”. O que escrevi é que a validade de um ensinamento moral, não é consequência necessária da sua origem divina.
Eu acredito que a religião (e aqui refiro-me aos ensinamentos revelados) pode inspirar e transformar os seres humanos com os seus ensinamentos morais. E nada possui uma tão grande capacidade de transformação como a religião.
Por outras palavras, eu afirmo que o que a religião ensina é bom; mas o facto de algo ser bom, não significa que tenha uma origem divina.
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