sábado, 26 de outubro de 2024

A Firmeza, a Paciência e o Amor

Por David Langness.


Ó Filho do Homem! Para tudo há um sinal. O sinal do amor é a firmeza sob o Meu decreto e a paciência sob as Minhas provações.

Ó Filho do Homem! O verdadeiro amante anseia pela tribulação, tal como o rebelde pelo perdão e o pecador pela misericórdia. (Bahá’u’lláh, As Palavras Ocultas, do árabe, #48, #49)

Nesta série de artigos sobre As Palavras Ocultas, a obra mística de Bahá’u’lláh, explorámos os mistérios da linguagem elevada do livro, a compreensão espiritual dos Seus conselhos nobres e os significados das Suas metáforas e alusões.

Ficámos a saber que cada frase deste belo livro poético tem múltiplos significados. Vimos como as leituras mais literais d’ As Palavras Ocultas não estão à altura da elevada paisagem verbal das muitas camadas simbólicas de consequências e intenção do livro. Tentámos descobrir algumas destas camadas de significados e compreender pelo menos parte do que a voz profética de Bahá’u’lláh nos deu.

Mas aqui, nestes dois aforismos simples e curtos, o significado místico das palavras de Bahá’u’lláh parece tão profundo que resiste a qualquer explicação.

O sinal do amor é a firmeza sob o Meu decreto e a paciência sob as Minhas provações” e “O verdadeiro amante anseia pela tribulação”, ambas ligam o amor às dificuldades, às provações e à tolerância.

No mundo material, nem sempre pensamos no amor desta forma. Muitas pessoas têm uma visão romântica do amor como um mar calmo e tranquilo de estabilidade emocional. Mas, na verdade, o amor pode trazer turbulência, problemas e lágrimas. O verdadeiro amor por outra pessoa significa, geralmente, que o amante sacrificaria qualquer coisa – paz, prosperidade, vida – pela pessoa amada:

Um dos requisitos do verdadeiro amor é a prontidão para suportar todo o sofrimento e tribulação que ocorreu no passado ou que possa ocorrer no futuro. Consequentemente, um amante apaixonado está sempre manchado de sangue, e aquele que anseia por encontrar o Amado é um peregrino constante. (Bahá’u’lláh, Fire and Light, p. 25)

O amor traz consigo mais do que apenas um pequeno incómodo, diz-nos Bahá’u’lláh. Em vez disso, produz provações e tribulações, sofrimento, dor e agitação emocional.

Buda afirmou que existir é sofrer. De muitas maneiras, a existência moderna aparentemente mitigou grande parte do sofrimento físico da vida – com a nossa electrónica, os nossos transportes, a forma como obtemos os nossos alimentos, os milagres da medicina moderna, a relativa tranquilidade da nossa vida quotidiana.

Mas cada um de nós, não importa quem somos ou como vivemos, sofre por dentro. Nenhuma vida prossegue sem dor. Espiritualmente, esta dor faz-nos ansiar por uma ligação profunda para além deste plano físico. Estimula-nos na nossa busca por significado e faz-nos desejar uma compreensão duradoura das nossas próprias almas.

Então, o nosso sofrimento tem significado?

Os ensinamentos Bahá’ís dizem que sim – que a tristeza e o sofrimento encontram o seu significado no poder de transformar a alma individual de um ser material num ser espiritual. O nosso sofrimento, se o olharmos à luz de um processo educativo, tem o potencial de nos refazer.

Os grandes poetas sufis, Hafez e Rumi, recordavam-nos constantemente esta poderosa verdade metafórica: “O amor vem com uma faca, não com uma pergunta tímida”, e também “O amor é um louco, a trabalhar nos seus esquemas loucos”.

Bahá’u’lláh utiliza um conceito ainda mais surpreendente quando diz: “O verdadeiro amante anseia pela tribulação”.

Os ensinamentos Bahá'ís encaram as provações e o sofrimento como uma dádiva para o espírito humano:

Para a alma leal, um teste não é mais do que a graça e o favor de Deus; pois o valente avança alegremente para a batalha furiosa no campo da angústia, quando o cobarde, chorando de medo, ficará agitado e estremecerá. Da mesma forma, o aluno hábil, que com grande competência dominou as suas matérias e as memorizou, exibirá alegremente as suas capacidades perante os seus examinadores no dia dos seus testes. Da mesma forma, o ouro maciço brilhará maravilhosamente e ficará resplandecnete no fogo do ensaiador.

É claro, portanto, que os testes e as provações são, para as almas santificadas, apenas a generosidade e a graça de Deus… ('Abdu’l-Bahá, Selections from the Writings of Abdu’l-Baha, pp. 181-182)

A nossa atracção e amor pelo divino, pelo espiritual, pelo transcendente e pelo semelhante a Deus, irão inevitavelmente testar-nos, parecem dizer estas Palavras Ocultas. Se verdadeiramente amamos a realidade espiritual da vida, desejaremos prová-lo. Assim, o fogo destas provações revelará, tal como o ouro faz quando aquecido pelo fogo, a verdadeira natureza e pureza do nosso amor.

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Texto original: Fortitude, Patience and Love (www.bahaiteachings.org)


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David Langness é jornalista e crítico de literatura na revista Paste. É também editor e autor do site www.bahaiteachings.org. Vive em Sierra Foothills, California, EUA

sábado, 19 de outubro de 2024

O físico ou o espiritual – escolher o que prevalece

Por David Langness.


Ó Filho do Ser! Se o teu coração estiver voltado para este domínio eterno e imperecível e para esta vida antiga e eterna, abandona esta soberania mortal e efémera. (Bahá’u’lláh, As Palavras Ocultas, #54)

Na faculdade, conheci um rapaz a quem todos chamavam monogâmico em série. Dizendo de uma forma simpática, ele era agressivamente solteiro. Cada vez que o via estava com uma moça diferente e raramente faltava a uma festa. Vamos chamar-lhe Cliff.

Eu vez perguntei-lhe sobre disso. Ele riu-se e deu-me uma variante do velho lugar-comum: “A variedade é o tempero da vida, e eu estou apenas a jogar em campo”.

Durante algumas aulas de literatura, percebi que o Cliff não costumava falar em lugares-comuns; ele conseguia mesmo pensar. As perguntas que ele fazia aos nossos professores durante as aulas revelavam uma pessoa mais profunda e atenciosa do que eu poderia imaginar. Fiquei também a perceber que o Cliff não parecia muito feliz, apesar de todas as festas.

Depois da faculdade, estive alguns anos sem ver o Cliff, até que um dia o encontrei numa loja.

Cliff, como estás?”, disse eu, enquanto reparava que ele usava uma aliança de casamento. Se tivesse entrado na loja a passear um leão pela trela, talvez não me tivesse surpreendido tanto.

Casei-me”, disse, com um grande sorriso.

Parabéns”, respondi, apertando-lhe a mão. “Não pensei que fosses do tipo de pessoa que iria casar...”

Nem eu”, retorquiu.

O que é que mudou?” perguntei-lhe.

Bem, tive uma epifania. Percebi que, com toda aquela corrida frenética atrás de mulheres, estava apenas a tentar negar a minha própria mortalidade.

A visão filosófica e espiritual de Cliff sobre si próprio pareceu-me bastante profunda.

Mais tarde, dei ao Cliff esta citação das Escrituras Bahá’ís:

Tendo, nesta viagem, mergulhado no oceano da imortalidade, libertado o seu coração do apego a qualquer coisa que não seja Ele, e alcançado os mais sublimes cumes da vida eterna, o buscador não verá aniquilação nem para si nem para qualquer outra alma. Beberá do cálice da imortalidade, pisará a sua terra, voará na sua atmosfera, associar-se-á àqueles que são as suas encarnações, tomará os frutos imperecíveis e incorruptíveis da árvore da eternidade, e será contado para sempre nos sublimes cumes da imortalidade, entre os habitantes do reino eterno. (Baha’u’llah, Gems of Divine Mysteries, p. 72)

Para mim, este pequeno excerto e a frase das Palavras Ocultas de Bahá’u’lláh acima exemplificam o cerne da verdadeira religião.

São duas citações que exprimem e examinam a própria raiz da condição humana: vivemos e respiramos hoje, mas amanhã morreremos. A certeza absoluta da nossa morte obriga todos os seres humanos a responder a uma questão fundamental sobre as nossas vidas: O que é que prevalece?

Quem acredita – como Cliff fez durante da fase da folia – que a vida termina quando o corpo morre, então será levado a concluir que nada tem muito valor duradouro. Por outras palavras, poderia concluir que tudo morre, e que somos todos apenas mamíferos sem alma, destinados ao esquecimento eterno no final das nossas vidas físicas. Perante esta opinião, a maioria das pessoas tenta simplesmente encontrar o máximo de prazer, satisfação e conforto material possíveis.

Mas quem percepcionar a presença de algo mais na vida, uma realidade mística e imortal que se estende para além do túmulo, então vai querer planear a longo prazo e não focar toda a sua vida no mundo material.

As pessoas que acreditam que a nossa consciência humana continua após a morte biológica, evocam frequentemente essa fase seguinte da existência vida após a morte. Mas a expressão pode ser enganadora, pois sugere que este mundo físico é onde temos a nossa vida real; e o mundo espiritual que se segue é apenas uma nota de rodapé.

Os ensinamentos Bahá’ís descrevem-no de forma diferente.

Esta fase terrena da nossa existência, diz-nos Bahá’u’lláh, é uma “soberania mortal e efémera”. Transcender essa soberania temporária e livrar os nossos corações do apego a ela, diz Ele, requer reorientar os nossos afectos para a eternidade. Em vez de amar o mundo físico, que acabará por perecer, deveríamos estender o nosso amor aos aspetos espirituais da vida – o infinito e o imperecível. Em vez de nos agarrarmos a este mundo, onde permanecemos apenas por um curto período de tempo, o nosso olhar deve contemplar o horizonte mais amplo e procurar uma visão mais longa.

Os ensinamentos Bahá’ís dizem que cada uma de nós é uma alma imortal, uma essência indestrutível. Esta existência física, que dura algumas dezenas de anos, serve apenas como a primeira fase do nosso crescimento espiritual – mas é uma fase muito importante. Aqui, neste plano material da realidade, devemos escolher entre focar-nos no que é efémero ou no que é duradouro.

Escolham bem.

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Texto original: The Physical or the Spiritual–Choosing What Lasts (www.bahaiteachings.org)


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David Langness é jornalista e crítico de literatura na revista Paste. É também editor e autor do site www.bahaiteachings.org. Vive em Sierra Foothills, California, EUA

sábado, 12 de outubro de 2024

Como a Alma lida com o Sofrimento

Por David Langness.


Ó Filho do Homem! Se a adversidade não te sobrevier no Meu caminho, como poderás seguir os caminhos daqueles que estão satisfeitos com o Meu agrado? Se as provações não te afligirem no teu desejo de Me encontrares, como alcançarás a luz no teu amor pela Minha beleza?

Ó Filho do Homem! A Minha calamidade é a Minha providência, exteriormente é fogo e vingança, mas interiormente é luz e misericórdia. Apressa-te para que te possas tornar uma luz eterna e um espírito imortal. Este é o meu mandamento para ti, cumpre-o.

Ó Filho do Homem! Se a prosperidade te sobrevier, não te regozijes, e se a humilhação cair sobre ti, não te lamentes, pois, ambas passarão e não mais existirão.

Ó Filho do Ser! Se a pobreza te atingir, não te entristeças; pois com o tempo o Senhor da prosperidade te visitará. Não temas a humilhação, pois a glória um dia repousará sobre ti. (Bahá’u’lláh, As Palavras Ocultas, #50, #51, #52, #53)

Ninguém escapa ao sofrimento e à tragédia nesta existência física.

Nas relações familiares, nas preocupações relacionadas com a saúde, na pobreza ou na prosperidade, nenhum de nós está imune à dor e ao sofrimento. Como seres humanos, todos partilhamos a experiência de lidar com adversidades, problemas e tragédias. Este mundo físico apresenta-nos constantemente provações e tribulações; é uma parte inevitável da condição humana.

A verdadeira religião reconhece esta realidade e tenta ensinar-nos a lidar com o sofrimento inevitável da vida.

O Budismo, por exemplo, preocupa-se quase inteiramente em aliviar o impacto do sofrimento na alma humana. As Quatro Nobres Verdades do Budismo dizem-nos que o sofrimento existe; que a causa do nosso sofrimento é o desejo e a ignorância; e que a cura para o sofrimento humano passa pelo desenvolvimento da capacidade da mente para a compreensão e o discernimento; depois, deve-se percorrer o caminho das acções espirituais (a que Buda chamou Caminho Óctuplo) para procurar a verdadeira iluminação. A essência do remédio Budista para o sofrimento, tal como o remédio Bahá’í, envolve o desprendimento do mundo material, que Buda disse ser a fonte de todo o sofrimento:

Não sigais uma vida de maldade; não vivais na negligência; não tenhais opiniões falsas; não valorizeis as coisas mundanas. Desta forma podeis livrar-vos do sofrimento. (Gautama Buda, Dhammapada, v.)

Nas quatro citações das Palavras Ocultas acima, Bahá’u’lláh apresenta-nos um conjunto de ensinamentos espirituais com beleza e nuances semelhantes. “Se a prosperidade te sobrevier…” ou “Se a pobreza te atingir”, afirma Ele, devemos esforçar-nos por reconhecer que este mundo de impermanência acabará por desaparecer; e realmente devemos acolher as adversidades e calamidades pessoais como advertências, provações e desafios constantes para permanecermos desprendidos destas condições temporárias.

No sânscrito original dos ensinamentos Budistas, Buda utilizou a palavra dukkha – que não significa apenas sofrimento ou dor, mas também impermanência (viparinama) ou estados de ser condicionais e mutáveis (samkhara). Exactamente da mesma forma, as Palavras Ocultas de Bahá’u’lláh advertem-nos contra o apego dos nossos corações e almas a essas coisas, estados e condições transitórias que “passarão e não mais existirão”.

Bahá’u’lláh e Buda pedem-nos que compreendamos e interiorizemos que este mundo e as suas mudanças não duram. A nossa tarefa, através da dor e do sofrimento que estas mudanças trazem, passa por mudar o nosso foco, o nosso amor e a nossa lealdade deste mundo temporário e impermanente para o mundo espiritual eterno:

Ó amigo, o coração é a morada dos mistérios eternos, não faças dele o lar das fantasias fugazes; não desperdices o tesouro da tua preciosa vida envolvido com este mundo que passa depressa. Tu vens do mundo da santidade – não ligues o teu coração à terra; és um morador da corte da proximidade – não escolhas a pátria do pó. (Bahá’u’lláh, The Seven Valleys, p. 34)

Embora os cataclismos exteriores sejam difíceis de compreender e suportar, ainda assim existe uma grande sabedoria por detrás deles, que aparecerá mais tarde. Todos os acontecimentos materiais visíveis estão inter-relacionados com forças espirituais invisíveis. Os infinitos fenómenos da criação são tão interdependentes como os elos de uma corrente.

Quando certos elos enferrujam, eles são quebrados por forças invisíveis, para serem substituídos por outros mais novos e melhores. Existem certos acontecimentos colossais que ocorrem no mundo da humanidade e que são exigidos pela natureza dos tempos. Por exemplo, as exigências do inverno são o frio, a neve, o granizo e a chuva – mas as aves e os animais que vivem durante seis meses, desfrutando de um curto período de vida, não se apercebendo da sabedoria do inverno, repreendem e lamentam e ficam descontentes, dizendo: “Porquê esta geada horrível? Porquê este granizo e esta tempestade? Porque não o clima ameno? Porque não a eterna primavera? Porquê esta injustiça por parte do Criador? Porquê este sofrimento? O que fizemos para enfrentar esta catástrofe?

Contudo, aquelas almas que viveram muitos anos e adquiriram muita experiência e resistiram a muitos invernos rigorosos, percebem que, para aproveitarem a primavera que se aproxima, devem passar pelo frio do inverno. (‘Abdu’l-Bahá, Divine Philosophy, p. 115)

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Texto original: How the Soul Deals with Suffering (www.bahaiteachings.org)


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David Langness é jornalista e crítico de literatura na revista Paste. É também editor e autor do site www.bahaiteachings.org. Vive em Sierra Foothills, California, EUA

sábado, 28 de setembro de 2024

O Verdadeiro Significado da Parábola do Bom Samaritano

Por Maya Bohnhoff.


Num website inter-religioso, uma ensaísta criticou o envolvimento Bahá’í com as Nações Unidas, com base no que ela entendia serem os ensinamentos Bahá’ís sobre como e quem criaria a unidade e a paz mundiais.

A sua crítica – baseada em várias percepções erradas, sobre o que a Fé Bahá’í ensina, e sobre o que Cristo ensinou – merece uma resposta.

No seu texto, a mulher a quem chamarei “Jen” explicou, erradamente, aquilo que pensava serem crenças Bahá’ís. Dizia:

... não deve haver tolerância para com as instituições e iniciativas educativas, ou políticas e programas de comunicação social que promovam atitudes e comportamentos intolerantes. Lembremo-nos que, fazer proselitismo, reivindicar um caminho exclusivo para a salvação, ou condenar um estilo de vida como a homossexualidade é considerado intolerante; isto aplicar-se-ia às escolas religiosas privadas e muito possivelmente às igrejas.

Ela não citou qualquer fonte para estas ideias, mas lembrei-lhe o que tinha dito anteriormente, que as leis Bahá’ís se aplicam apenas aos Bahá’ís e nunca devem ser impostas a mais ninguém. Isto está de acordo com um padrão que existe em todas as religiões reveladas, e é uma extensão lógica dos dois maiores Mandamentos dados por Moisés e Cristo. Em Mateus 22:35-40, Cristo esclareceu a resposta:

«...Mestre, qual é o mandamento mais importante da lei?» Jesus respondeu-lhe: «Ama o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a alma e com todo o entendimento. Este é que é o primeiro e o mais importante dos mandamentos. O segundo é semelhante a este: Ama o teu próximo como a ti mesmo. O essencial de todo o ensino da lei e dos profetas está nestes dois mandamentos.»

Em Lucas 10:25-37, Cristo invocou de forma notável este mandamento para responder a uma questão profunda: Como posso alcançar a vida eterna? Depois de assegurar ao jovem questionador que a vida eterna é herdada pela obediência ao Maior Mandamento – “Faz isto e viverás” – Cristo prosseguiu com um exemplo em que a tolerância para com as diferenças extremas é central. Contou a história de um judeu ferido que, depois de ser ignorado por dois sacerdotes judeus, é resgatado por um odiado samaritano. Nessa época, os judeus e os samaritanos acreditavam ser o Povo Eleito e tinham tolerância zero entre si. No entanto, Cristo descreve o samaritano salvando a vida do judeu.

Uma das características principais desta história é que, embora as razões para os sacerdotes evitarem o contacto com o homem ferido sejam a pureza ritual e doutrinal, nem o judeu resgatado nem o seu salvador falam ao outro sobre a intolerância ancestral ou instam o outro a arrepender-se e a converter-se. Não há sermões, apenas compaixão – uma compaixão que está, como Cristo sublinha, em conflito com a lei religiosa judaica.

Na Parábola do Bom Samaritano, Jesus não está apenas a promover a tolerância para com as diferenças de visão do mundo, religião, crenças morais ou etnia. Ele está a dizer ao jovem estudioso – e, por extensão, a qualquer pessoa que o siga – para não só tolerar, mas amar esse próximo, a quem podem considerar pecador, ou apóstata, ou herege, ou impuro.

Pedi à Jen que compreendesse que os Bahá’ís estão tão dedicados a proteger as suas crenças da intolerância como se fossem as nossas. Reparei que ela tinha citado uma declaração Bahá’í na ONU que menciona: “…uma profunda transformação nas atitudes e nos comportamentos”. As atitudes e os comportamentos só podem ser transformados através de uma mudança de coração, e uma mudança de coração deve vir do desejo do indivíduo de mudar. Não pode ser provocado por uma força exterior. Recorde a afirmação do apóstolo Paulo em 2 Coríntios 3:18 de que:

Todos nós, porém, estamos de rosto descoberto e, como um espelho, somos um reflexo da glória do Senhor. Transformamo-nos assim numa imagem dele, com um brilho cada vez maior…

Esta é uma das muitas razões pelas quais a Comunidade Internacional Bahá’í trabalha em todas as organizações internacionais para garantir pacificamente a tolerância religiosa – tanto para os cristãos, como para qualquer outro grupo. Como os Bahá’ís são perseguidos pelas suas crenças em vários países, sabemos por experiência própria o quão dolorosa e mortal pode ser a intolerância religiosa.

Nas suas observações, Jen também parafraseou uma “proposta bahá’í” dizendo: “apenas os líderes religiosos que deixam claro aos seus seguidores que o preconceito, a intolerância e a violência não têm lugar na vida de uma pessoa religiosa devem ser convidados a participar do trabalho deste organismo.” Não ficou claro o que ela queria dizer com “este organismo”, e achei os seus comentários paradoxais porque implicavam que ela pensava que, para ser crente em Jesus, é preciso tolerar o preconceito, a intolerância e a violência em seu nome.

“Espero que não acredites nisto”, disse-lhe, e expliquei que a declaração Bahá’í significa simplesmente o que diz: que qualquer trabalho realizado ao serviço da unificação da humanidade não pode ter esperança de sucesso se for feito num espírito de preconceito, intolerância e violência.

Jesus Cristo deixou à humanidade instruções muito específicas sobre como viver de acordo com os Seus ensinamentos, como nesta passagem de Lucas 6:27-39:

Digo a todos os que me estão a ouvir: amem os vossos inimigos e façam bem a quem vos odeia. Abençoem quem vos amaldiçoa e orem por aqueles que vos tratam mal. Ao que te bater num lado da cara, deixa-o bater também no outro... Se amarem apenas aqueles que vos amam, que recompensa poderão esperar de Deus? Até os pecadores têm amor àqueles que os amam. Se fizerem bem somente aos que vos fazem bem, que recompensa poderão esperar? Até os pecadores procedem assim... Vocês, pelo contrário, tenham amor aos vossos inimigos, façam-lhes bem, e emprestem sem nada esperar em troca. Assim, receberão grande recompensa e serão filhos do Deus altíssimo, porque ele é bom até para as pessoas ingratas e más. Sejam misericordiosos como também o vosso Pai é misericordioso.» «Não julguem e não serão julgados. Não condenem e não serão condenados. Perdoem e serão perdoados... Pois a medida que usarem para os outros será usada também para convosco.

Este espírito — o espírito de Cristo — ecoa de época em época, encontrando expressão cada vez mais enfática e explícita nos ensinamentos Bahá'ís:

Agi de acordo com os conselhos do Senhor: isto é, levantai-vos (…) com aquelas qualidades que dotam o corpo deste mundo de uma alma vivente, e levam esta criança, a humanidade, à fase da idade adulta. Tanto quanto puderem, acendam uma vela de amor em cada reunião e, com ternura, regozijem-se e animem cada coração. Cuidai do estranho como se fosse um dos vossos; mostrai às almas estranhas a mesma bondade amorosa que concedeis aos seus amigos fiéis. Se alguém vos agredir, procurai ser seu amigo; se alguém vos apunhalar no coração, sede um bálsamo curativo para as suas feridas; se alguém vos provocar e troçar de vós, respondei-lhe com amor…. Talvez esses modos e palavras vindas de vós façam com que esta terra poeirenta se torne celestial... para que a guerra e o conflito cessem e não existam mais, e o amor e a confiança instalem as suas tendas nos cumes do mundo. Essa é a essência das advertências de Deus... (Selections from the Writings of ‘Abdu’l‑Bahá, #16)

À luz destas referências, a afirmação de Jen sobre a tolerância fez-me pensar, levando-me a perguntar: se o Espírito de Cristo é amor - mesmo pelos nossos inimigos e por aqueles que nos sentimos inclinados a desprezar - não serão a intolerância e o ódio o espírito do anticristo?

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Texto original: What the Parable of the Good Samaritan Really Means (www.bahaiteachings.org)


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Maya Bohnhoff é Baha'i e autora de sucesso do New York Times nas áreas de ficção científica, fantasia e história alternativa. É também compositora/cantora (juntamente com seu marido Jeff). É um dos membros fundadores do Book View Café, onde escreve um blog bi-mensal, e ela tem um blog semanal na www.commongroundgroup.net.

sábado, 21 de setembro de 2024

A Arte de Viver e a Arte de Morrer

Por John Hatcher.


Os ensinamentos Bahá’ís dizem-nos que a morte é uma mensageira de alegria.

Como já escrevi em vários artigos, de acordo com tudo aquilo em que sinceramente acredito e que prezo, a morte é apenas um nascimento para uma realidade mais ampla e agradável, uma realidade que o meu ser essencial já ocupa. A minha mente racional memorizou e baseia-se numa série de textos maravilhosos das Escrituras Bahá'ís que me asseguram que é assim, que a morte não deve ser temida, mas deve ser acolhida como uma libertação das restrições e do sofrimento daquilo que 'Abdu'l-Bahá e Bahá'u'lláh por vezes chamam “monte de pó” do mundo:

Não se contentes com a tranquilidade de um dia que passa, e não te prives do descanso eterno. Não troques o jardim do deleite eterno pelo monte de pó de um mundo mortal. Da tua prisão ascende aos gloriosos prados no alto, e da tua gaiola mortal voa para o paraíso do Sem Lugar. (Bahá’u’lláh, As Palavras Ocultas, do persa, #39)

Quando a alma humana se desprender deste efémero monte de pó e ascender ao mundo de Deus, então os véus cairão e as verdades virão à luz, e todas as coisas antes desconhecidas se tornarão claras e as verdades ocultas serão compreendidas. (Selections from the Writings of ‘Abdu’l-Bahá, #149)

Na verdade, numa analogia maravilhosa, ‘Abdu’l-Bahá compara a sensação de ser libertado das restrições desta vida à sensação de alegria que um pássaro pode sentir ao ser libertado da sua gaiola:

Sustentar que o espírito é aniquilado com a morte do corpo, é imaginar que um pássaro preso numa gaiola pereceria se a gaiola fosse quebrada, embora o pássaro não tenha nada a temer com o quebrar da gaiola. Este corpo é igual à gaiola e o espírito é como o pássaro: observamos que este pássaro, livre da gaiola, voa livremente no mundo do sono. Portanto, se a gaiola fosse quebrada, o pássaro não só continuaria a existir, mas também os seus sentidos seriam aperfeiçoados, a sua percepção alargar-se-ia e a sua alegria tornar-se-ia mais intensa. (Some Answered Questions, newly revised edition, p. 262)

Então, porque é que só agora considero como a arte de viver inseparável da arte de morrer, e que cada vez mais sinto que ainda não estou preparado para essa “libertação”?

A arte de viver e a arte de morrer são teoricamente um processo único, quer falemos literal ou figurativamente. Um rápido olhar a alguns textos das Escrituras Bahá’ís confirma esta perspectiva – que assim que nascemos, morremos; e assim que morremos, nascemos. Assim, a arte de viver bem é, de facto, inseparável da arte de nos prepararmos para morrer bem.

Bahá’u’lláh menciona este axioma quando afirma claramente que todo o propósito da educação espiritual e do esclarecimento prestado pelos profetas de Deus é preparar-nos individualmente para esse segundo (ou terceiro) nascimento:

Os Profetas e Mensageiros de Deus foram enviados com o único propósito de guiar a humanidade ao íntegro Caminho da Verdade. O propósito subjacente da Sua revelação tem sido educar todos os homens para que eles possam, na hora da morte, ascender - com a maior pureza e santidade, e com absoluto desprendimento - ao trono do Altíssimo. (Gleanings, LXXXI)

Como estou assumidamente preocupado com a morte e, com toda a franqueza, não desejo alcançá-la neste exacto momento, devo presumir que ainda não cumpri o propósito da minha vida, e ainda não dominei completamente a arte de viver bem.

Por um lado, tenho a certeza de que daria a minha vida, sem hesitação, no calor do momento, para salvar outra pessoa ou para defender as minhas crenças. No entanto, é evidente que ainda não aperfeiçoei a arte de viver, caso contrário, presumo, que estaria pronto e ansioso para “ascender - com a maior pureza e santidade, e com absoluto desprendimento - ao trono do Altíssimo”.

Certamente eu não passaria horas na internet procurando um carro a bom preço. Nem eu estaria tão ansioso para fazer visitas regulares a uma churrasqueira para consumir grandes quantidades de vegetais e carne de porco desfiada se estivesse suficientemente desprendido desta vida para me considerar preparado.

Quão desprendido e espiritual posso ser se ainda tenho esperança de ficar em boa forma, de emagrecer, de trabalhar os meus abdominais? Às vezes até considero comprar um fato para parecer elegante, caso seja chamado a aceitar algum prémio. O último fato que comprei foi há trinta anos para me casar.

Os meus pensamentos e esperanças neste mundo material, dizem os ensinamentos Bahá’ís, apenas me afastam da realidade eterna:

Se a esperança do homem se limita ao mundo material, então ele está a trabalhar para que fim? Um homem com um pouco de compreensão deve perceber que não deve imitar o verme que se prende à terra onde finalmente será enterrado. Como pode o homem ficar satisfeito com esta baixa condição? Como pode ele encontrar ali a felicidade? A minha esperança é possais libertar-vos do mundo material, e esforçar-vos para compreender o significado do mundo celestial, o mundo das qualidades duradouras, o mundo da verdade, o mundo da realeza eterna, para que as vossas vidas não sejam estéreis de resultados, pois a vida do homem material não tem fruto de realidade. Os resultados duradouros são produzidos ao reflectir a existência celestial.

Se um homem for tocado pela centelha divina, mesmo sendo um proscrito e oprimido, ele será feliz e a sua felicidade não poderá morrer. (‘Abdu’l-Baha, Divine Philosophy, p. 56)

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Texto original: The Art of Living and the Art of Dying (www.bahaiteachings.org)


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John S. Hatcher é formado em Literatura Inglesa pela Universidade de Vanderbilt e Doutorado em Literatura Inglesa pela Universidade da Georgia (EUA). É professor Emérito na Universidade de South Florida (Tampa, EUA). É também conhecido como poeta, palestrante e autor de numerosos livros sobre literatura, filosofia e teologia e escrituras Baha’is. Entre as suas obras contam-se Close Connections; From the Auroral Darkness: The Life and Poetry of Robert E. Hayden; A Sense of History: The Poetry of John Hatcher; The Ocean of His Words: A Reader's Guide to the Art of Baha'u'llah; and The Purpose of Physical Reality; The Kingdom of Names.

sábado, 14 de setembro de 2024

Outros Quatro Significados da Primeira Revelação de Bahá'u'lláh

Por Nader Saiedi.


Neste segundo artigo sobre a primeira experiência de revelação do Criador a Bahá’u’lláh, vamos ver mais quatro significados inerentes àquelas primeiras palavras do Criador.

No Seu sonho revelador na prisão do Poço Negro, Bahá’u’lláh ouviu esta mensagem de Deus: “Em verdade, far-Te-emos vitorioso por Ti próprio e pela Tua Pena.” (Epístola ao Filho do Lobo)

Esta promessa do Criador garantiu a Bahá’u’lláh que nenhuma das antigas formas de espalhar a religião – guerra, coação ou violência – seria empregue durante a revelação de Bahá’í. Nem, dizem os ensinamentos Bahá’ís, a religião seria imposta pela força através dos mecanismos coercivos da própria sociedade. Estas palavras dotam os ensinamentos Bahá’ís com o princípio da separação entre a igreja e o Estado:

1. Separação entre Igreja e Estado

O domínio da religião é o domínio do espírito, e por essa razão Bahá’u’lláh afirmou que o único meio legítimo de promover a religião é o amor, a persuasão racional e a transformação dos corações do povo através do estudo independente das palavras de Deus.

Esta eliminação da coação e restrição do domínio da religião assevera a separação institucional entre igreja e Estado.

Nas Suas Escrituras, Bahá’u’lláh aprofundou o significado deste conceito - tornando a Causa de Deus vitoriosa através do Profeta e da Sua pena - afirmando que isto significa que o domínio do Estado pertence ao reino da Terra, enquanto o domínio da religião pertence ao reino do coração.

Bahá'u'lláh escreveu que Deus investiu instituições políticas seculares com a autoridade sobre a Terra, e Ele destacou o coração do povo para o Seu domínio:

O Deus uno e verdadeiro, exaltada seja a Sua glória, sempre considerou, e continuará a considerar os corações dos homens como a Sua propriedade exclusiva. Tudo o resto, quer se refira à terra ou o mar, sejam elas riquezas ou glórias, Ele legou-as aos reis e aos governantes da terra. (Bahá’u’lláh, Gleanings, CII)

É claro que é importante notar que esta separação não é a mesma que a concepção ocidental predominante de separação entre a igreja e o Estado. Bahá’u’lláh quer transformar todos os aspetos da civilização, para que tudo o que nela se torne espiritual.

Ser espiritual significa gerar uma cultura que vê todas as pessoas e todos os seres como sagrados e dotados de direitos. Por isso, os ensinamentos Bahá’ís dizem que a arte, a economia global, a política das nações e outras instituições sociais devem também ser transformadas à luz de uma atitude espiritual e moral que afirma a dignidade e a igualdade de todos os seres humanos. Mas nos ensinamentos Bahá’ís, esta reconstrução moral e espiritual do mundo não é acompanhada por uma identidade institucional que preenche o aparelho coercivo do Estado com uma religião.

2. A Unidade de Todas as Religiões e dos Seus Profetas

Um dos principais ensinamentos da Fé Bahá’í presente na primeira palavra de Bahá’u’lláh é a unidade de todas as religiões e a unidade de todos os profetas de Deus.

Os ensinamentos Bahá’ís dizem que a ênfase nessa unidade é uma das mais significativas pré-condições de realização da paz no mundo. A religião deve ser uma causa de unidade e concórdia; e se a religião for entendida como a legitimação da violência e do ódio, é melhor não ter religião.

Bahá’u’lláh realçou a unidade de todas as religiões e de todos os profetas e mensageiros de Deus. A verdade de todas as religiões é a mesma, proclamou, embora a mesma verdade tenha sido transmitida à humanidade sob a forma de algumas leis sociais que são expressões da época e do espaço em que a religião aparece.

Os Bahá’ís acreditam que a humanidade deve reconhecer a verdade espiritual comum de todas as religiões, em vez de reduzir a religião às suas leis sociais historicamente específicas, e avançar para a harmonia e a unidade de toda a religião.

Uma das formas como a primeira palavra de Bahá’u’lláh manifesta o princípio da unidade de todas as religiões é esta parte dessa afirmação: “Não Te lamentes por aquilo que Te sucedeu, nem tenhas medo, pois estás em segurança.” A última parte desta afirmação “nem tenhas medo, pois estás em segurança” são exactamente as palavras que Deus falou a Moisés. De acordo com o Alcorão (28:31), quando Deus pediu a Moisés que colocasse o seu bordão no chão, e este se transformou numa serpente gigantesca. Moisés ficou com medo e recuou. Então Deus dirigiu-se a Moisés e disse exatamente o que disse a Bahá’u’lláh. Isto significa que Bahá’u’lláh tem a mesma condição que Moisés – e também implica que o bordão de Moisés se transformou na pena de Bahá’u’lláh. O símbolo do triunfo milagroso de Deus sobre as forças do ódio e da injustiça é agora a pena do profeta, cujos movimentos transformam a palavra e dão razão à verdade espiritual.

A entrada do Siyah-Chal (Poço Negro) onde Baha’u’llah esteve preso em Teerão, em 1852.

 3. O Conceito Dialogal da Religião

Isto leva-nos a outro ensinamento de Bahá’u’lláh implícito nesta primeira revelação divina – a concepção dialogal da religião. Aqui são definidas três realidades em termos do mesmo atributo, nomeadamente auxiliando e tornando a Causa de Deus vitoriosa.

Em primeiro lugar, é Deus que torna a causa de Bahá’u’lláh vitoriosa, conforme mencionado na promessa feita por Deus a Bahá’u’lláh de que Ele o ajudará. Mas a forma como Deus torna Bahá’u’lláh vitorioso é através do próprio ser e das palavras de Bahá’u’lláh. Por outras palavras, todo o ser de Bahá’u’lláh representa o processo de tornar a Causa divina vitoriosa.

Mas depois o resto da frase implica a promessa divina de que “Em breve Deus levantará os tesouros da terra - homens que Te ajudarão através de Ti mesmo e através do Teu Nome…” É de salientar que a palavra que é aqui traduzida como “ajudarão”, é a mesma palavra que é traduzida anteriormente como sendo “vitorioso” (nusrat). Por outras palavras, a humanidade também se envolve na mesma missão, através da proclamação da palavra e do nome de Bahá’u’lláh.

Podemos ver aqui que Deus, o seu profeta e a humanidade participam neste processo de nusrat, a própria essência da verdade religiosa. Isto significa que os humanos aparecem na imagem de Deus, participando na regeneração espiritual do mundo. Essa aliança divina mostra-nos a dignidade de todos os seres humanos. Os humanos tornam-se agora seres espirituais, com consciência, que devem abordar a verdade espiritual através da sua busca independente e do seu percurso espiritual.

A liberdade de consciência, a igualdade de direitos, a dignidade de todos os seres humanos, a democracia e uma cultura global de paz são tudo reflexos lógicos e manifestações desta nova definição de seres humanos - conceitos que Bahá’u’lláh revelou gradualmente nas Suas Escrituras.

4. A Humanidade: uma mina rica em maravilhosas pedras preciosas

A implicação final destas primeiras palavras de Bahá’u’lláh enfatiza o propósito dinâmico e glorioso da vida humana. Na sua declaração, Bahá’u’lláh define os seres humanos espirituais como “tesouros da terra”. O contexto desta afirmação emerge de várias profecias xiitas, indicando que na altura da vinda do prometido 12º Imam, os tesouros da Terra seriam descobertos. Mas para Bahá’u’lláh o tesouro supremo da Terra está nas potencialidades espirituais dos seres humanos, e não várias formas de ouro e prata.

Outras Escrituras posteriores de Bahá’u’lláh definem os seres humanos como uma mina rica em joias maravilhosas, e que é através da educação espiritual que estes tesouros podem ser revelados.

Assim, para os Bahá'ís, a vida é um processo dinâmico da realização da riqueza do potencial humano e do percurso para a concretizar. As Escrituras Bahá'ís definem o paraíso como a realização deste potencial espiritual. O processo da vida representa a própria dinâmica da construção do paraíso nesta Terra.

Outra expressão do mesmo ponto é a definição destes seres humanos como os homens (em árabe, rijal). Aqui as pessoas que se irão levantar para ajudar a causa de Deus são definidas como homens. Mas estes homens não são homens biológicos, mas sim todos aqueles que assumem o papel activo e público, que apenas os homens costumavam fazer.

Como Bahá’u’lláh deixa claro em muitos das Suas Escrituras, as almas que se levantam para ajudar a Sua causa são homens e mulheres. Bahá’u’lláh designa estas pessoas como homens (rijal) – não para excluir as mulheres, mas para convidar toda a humanidade, homens e mulheres, a assumir o papel social que já esteve confinado aos homens.

Esta mensagem Bahá'í define tanto os homens como as mulheres não em termos biológicos, mas sim através da sua identidade espiritual. Todos são homens, todos são seres sociais e activos, pois todos são seres espirituais. O uso da palavra rijal por Bahá’u’lláh, aqui que significa o papel social dos homens e não do homem biológico, é a continuação da definição mística de rijal tanto como homens como mulheres.

No seu livro “As Revelações de Meca”, Ibn al-Arabi, o famoso místico do Islão, interpretando a referência do Alcorão aos homens (rijal) que não são impedidos pelo comércio de se lembrarem de Deus (24:37), explicou que estes homens são seres nobres – que são homens e mulheres. É de salientar que o próprio Bahá’u’lláh se refere frequentemente a esta mesma afirmação do Alcorão sobre o rijal e define-os como “mãos da causa”, aqueles que dedicam as suas vidas a tornar a Causa de Deus vitoriosa. Como sabemos, na Fé Bahá’í, o título de Mãos da Causa aplica-se a homens e mulheres. É por isso que Bahá’u’lláh muitas vezes afirmou que todas as mulheres Bahá’ís são consideradas como rijal, tal como os homens, no papel social activo de um ser humano espiritual.

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Texto original: Four More Meanings of Baha’u’llah’s Initial Revelation (www.bahaiteachings.org)


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Nader Saieddi é professor de Estudos Bahá’ís na UCLA (Los Angeles, EUA). É autor de diversos livros, incluindo Logos and Civilization: Spirit, History and Order in the Writings of Baha’u’llah; e Gate of the Heart: Understanding the Writings of the Bab. Nasceu em Teerão (Irão) e tem um mestrado em economia pela Universidade Pahlavi (Siraz) e doutoramento em sociologia pela Universidade de Wisconsin.